Em 2012, a revista Granta selecionou vinte contos dos melhores jovens escritores no Brasil. Daniel Galera foi um dos escolhidos e integrou a coletânea com seu conto “Apneia”. O texto publicado é o primeiro capítulo do romance Barba Ensopada de Sangue, publicado meses antes da premiação.
O conto narra um diálogo de um homem e seu pai que, entre suas esquivas, precisa explicar a presença de uma arma consigo. Em um desvio da conversa, somos apresentados ao passado de Gaudério, avô do protagonista. Quando jovem, Gaudério desapareceu e se tornou um andarilho, dando notícias sobre sua vida em intervalos irregulares. Durante suas andanças, conheceu a cidade de Garopaba, onde se fixou e colheu desavenças pela sua natureza de gaúcho bravo que puxava a faca por qualquer coisa.
Algum tempo depois do avô instalado em Garopaba, o pai recebeu uma ligação do delegado da cidade e ouviu a história de que Gaudério, durante a queda de energia em um baile, foi esfaqueado e morto “pela cidade”. Como demoraram a encontrar o contato da família, o delegado avisou que já haviam enterrado o corpo. Ao visitar a lápide precária, o pai entendeu que a conversa com o delegado não passava de baboseira.
Ao término desse causo, o pai explica ao filho que tinha a intenção de investigar a história do avô em Garopaba, mas agora não tem mais possibilidades já que decidiu se matar. Com a justificativa de que protagonista é a cara do avô, com exceção da barba cheia que Gaudério usava, fica subentendido que continuar a investigação é um dos últimos desejos do pai. Além disso, existe um pedido explícito de que sua cachorra, Beta, seja sacrificada depois de sua morte.
Esse protagonista, um professor de natação sem nome que sofre de prosopagnosia, uma doença que impossibilita a capacidade de identificar e memorizar rostos, inclusive o próprio, tem sua história impulsionada a partir desse diálogo. Deslocado, perde a única pessoa com quem tinha uma ligação forte e se apega à busca do avô. Ao se mudar para Garopaba, leva consigo apenas uma foto de Gaudério e a cachorra Beta, que se torna sua fiel companheira.
A realização do pedido subjetivo da busca e a recusa ao sacrifício da cachorra podem ser indícios de que as questões interiores são elementos mais fortes do que os acontecimentos concretos. Parte dessa noção vem dos traços que permeiam o universo dos livros de Galera, como a busca frustrada pela identidade marcada pelas descontinuidades, como o suicídio do pai, namoros interrompidos, conflitos familiares, promessas não cumpridas e etc., e a presença de um vagar, uma contemplação gratuita.
No entanto, Barba Ensopada de Sangue possui desenvolvimentos que se relacionam com uma crise do homem médio e seu lugar enquanto narrador na literatura brasileira contemporânea.
No entanto, Barba Ensopada de Sangue possui desenvolvimentos que se relacionam com uma crise do homem médio – branco, heterossexual, classe média, etc. – e seu lugar enquanto narrador na literatura brasileira contemporânea. Esse questionamento e seus elementos também nos remetem ao seu romance de estreia, Até o Dia em que o Cão Morreu.
Publicado em 2003, o livro conta a história de um homem, graduado em letras que, morando sozinho em um apartamento sustentado pelos pais, passa os dias a beber cerveja e vagar pela cidade. Escrito de maneira curta, a narrativa retrata o momento de mudança, quando passa a cuidar de um cachorro de rua, Churras, e se relaciona amorosamente com uma modelo chamada Marcela.
De maneira sucinta, podemos elencar elementos em comum: o cachorro marcado pela aura da morte como companheiro; mulheres que, num primeiro momento, passam ao protagonista a sensação de fragilidade, mas revelam o contrário e se tornam agentes de impulsão do homem (algo próximo ao clichê da esposa-babá); o avô como inspiração e morador de um lugar ideal; o espaço fora do caos urbano e a solidão como condições do lugar ideal; a busca do sentido da vida por meio da busca da identidade; e, por fim, uma introdução que prenuncia o fim do livro – sempre em aberto.
No momento de comparação, a impressão que fica é o amadurecimento que a crise tem em Barba Ensopada de Sangue. Junto ao estilo mais descritivo do último livro, a crise abarca questionamentos espirituais e filosóficos, retratados principalmente na relação do professor com um amigo budista, Bonobo. A questão da identidade deixa de perpassar o exercício de uma profissão após a formatura e a inércia que o desânimo provoca, mas passa a ser sentida também num nível abstrato – a construção de quem se é – e a solidão parece se transformar, de um livro para outro, no que hoje entendemos por solitude (circula pela internet a noção de que este é um estado de reclusão voluntária, sem o sofrimento que a solidão impõe).
Além disso, o ambiente como elemento importante em ambas narrativas passa por um desenvolvimento diferente. Enquanto Até o Dia em que o Cão Morreu apenas sugere o contraste entre um ambiente rural e outro urbano, Barba Ensopada de Sangue investe uma aura mística em Garopaba e desenvolve as minúcias de uma cidade pequena que, fora de temporada, vive uma vida completamente diferente, permeada por superstições históricas e até mesmo de uma imagem mítica construída em cima de Gaudério. Aos poucos, os contornos do lugar ideal passam a ser definidos.
Sem desrespeitar a proposta do estilo de cada livro, as narrativas não são repetições de uma história aperfeiçoada, mas os questionamentos que indicam tal crise e que perpassam o estilo e a obra de Daniel Galera podem ter amadurecido entre 2003 e 2012.