Devia fazer muito frio em 27 de janeiro de 1945. Mas não fazia diferença, pois todos os prisioneiros que seriam libertados do campo de trabalhos forçados e extermínio de Auschwitz não teriam roupas adequadas. Foi há 74 anos. Não faz tanto tempo assim, porém aqueles eventos hediondos começam lentamente a ser esquecidos.
É preciso lembrar.
A data foi criada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, através da resolução 60/7, em 1º de novembro de 2005, na qual, além de criar a data internacional de lembrança das vítimas do holocausto, a principal instituição internacional do pós-guerra precisa “rejeitar qualquer tentativa de negação do holocausto como um evento histórico” (o texto inteiro pode ser lido, em inglês, aqui).
Bem, consta que quando uma memória precisa ser lembrada, ela já está sendo esquecida. É exatamente o que está ocorrendo. Os sobreviventes estão morrendo, os justos entre as nações não estão mais sendo lembrados (há 2 brasileiros: Aracy de Carvalho Guimarães Rosa e Luiz Martins de Souza Dantas). Muitas pessoas não sabem, outras tantas acham que foi exagero; alguns gritam, histericamente, que não existiu.
Porém, no dia 27 de janeiro de 1945, debaixo de um frio horrível, os soldados soviéticos libertaram cerca de 4.500 seres humanos (é preciso lembrar, pois haviam sido privados de sua humanidade).
Seu sofrimento era um sofrimento humano. Suas doenças, doenças humanas. Um desespero humano. Transformá-los em números (6.000.000 de judeus, milhões de prisioneiros soviéticos, milhões de poloneses, meio milhão de sérvios, ciganos, deficientes físicos, homossexuais, testemunhas de Jeová) também lhes tira a humanidade. Atrás de cada “1” dessa soma horrenda havia uma história. A estatística diz “1=1”, mas eram milhões de vidas humanas diferentes entre si.
Quando uma memória precisa ser lembrada, ela já está sendo esquecida. É exatamente o que está ocorrendo. Os sobreviventes estão morrendo, os justos entre as nações não estão mais sendo lembrados.
Também é importante lembrar que as políticas de extermínio nazistas não eram compostas apenas de trabalhos forçados e extermínio nas câmaras de gás. Não, senhoras e senhores, havia também guetos (o maior deles: Gueto de Varsóvia), havia pura e simples tortura e assassinato. O extermínio não foi apenas industrial, também foi feito individualmente; horroriza-me pensar que também por mãos humanas.
E o que a literatura tem com a Shoah, o Khrubn, o Porrajmos?
A literatura de testemunho permite ouvir o ser humano atrás do número dos mortos, o ser humano atrás do sobrevivente. Na literatura de testemunho, temos uma tensão entre a necessidade de narrar o trauma e a impossibilidade de entender o narrado, entre a ficção e a realidade, entre a história e a memória.
Eu basicamente me ocupo de literatura polonesa – há muita literatura de testemunho em polonês. Mas também há poemas em iídiche escritos dentro do gueto de Varsóvia (encontrados nos arquivos de Emanuel Ringelblum). Também há poesia escrita em polonês e publicada clandestinamente dentro do gueto (Władysław Szlengel). Talvez Bruno Schulz tenha escrito algo no gueto de Drohobycz. Talvez Debora (Dvoyre) Vogel haja escrito seu último poema no gueto de Lwów. Uma mãe chorou ao ver seus filhos com fome dentro do gueto. Um velho avôzinho pensou em seus netos. Todos passaram fome. Todos passaram frio (casacos de pele eram item proibido). Houve crianças gestadas. Houve crianças abortadas. Houve todos os mortos de Sobibór e Treblinka, mas também houve quem tenha sobrevivido e “dado testemunho”. Houve quem morreu e suas vozes chegam até nós. São vozes fracas, devemos apurar os ouvidos para ouvi-las.
A literatura de testemunho responde a perguntas (feitas por filósofos): é possível escrever poesia depois de Auschwitz? Sim, é possível. É possível escrever prosa depois de Auschwitz? Sim, é possível. Eu pergunto às senhoras e senhores: como é possível que estejamos nos esquecendo?