Se existir algo como uma natureza humana, coisa de que eu duvido, ela há de ser bastante complicada de se definir. Excluindo os casos patológicos, seres humanos são muito parecidos entre si. Parece-me ser justamente isto a permitir julgamentos de cunho moral e, concomitantemente, ser precisamente esta a origem de sua impossibilidade.
A literatura se ocupa do gênero humano faz muito tempo. A fundação do mundo e a criação do universo, via mito, são contadas de perspectiva humana – ou alguém já ouviu o mito de criação que domina entre os cavalos?, ou, mudando um pouquinho a discussão, a metafísica das formigas?
A maldade, para ser compreendida, precisa ser despida dos cascos de satanás.
Quando nos deparamos com a maldade, tentamos representá-la como demônio, cramulhão. O problema é que a maldade, Hannah Arendt que o diga, é perpetrada por seres humanos. Não iguais, mas muito parecidos conosco. Isso assusta e apavora.
Se lermos Eichmann em Jerusalém, escrito pela grande pensadora, veremos não um monstro, mas alguém até bastante medíocre (há evidência em contrário e a perspectiva de Arendt tem sido alvo de muito debate).Teremos, nos dirá Leonard Cohen (que escreveu um poema intitulado “All there is to know about Adolph Eichmann”, ou seja, “Tudo que há para saber sobre Adolph Eichmann”), alguém com dez dedos nas mãos, dez dedos nos pés. Nada de “incisivos enormes”. Nada de “baba verde”. Também não consta terem encontrado chifres ou cascos.
Há alguns anos, quando eu dava aulas de “Introdução à literatura polonesa”, esse tema surgiu após a leitura de A primeira fotografia de Adolf Hitler, de autoria da onipresente Wisława Szymborska (tradução de Regina Przybycien; pode-se ler o poema e um artigo muito interessante aqui). A maldade, para ser compreendida, precisa ser despida dos cascos de satanás; precisa deixar de ser um fato sem causa aparente. É preciso encará-la nos olhos e lembrar que foi feita com mãos humanas, como nos recorda a mesma Szymborska (agora, em tradução de Eneida Favre):
“A mão”
“Vinte e sete ossos,
trinta e cinco músculos,
cerca de duas mil células nervosas
em cada polpa de nossos cinco dedos.
Isso basta completamente
para escrever ‘Mein Kampf’
ou “O Ursinho Puff”.”
A mão humana. Esses vinte e sete ossos até frágeis, que chegaram ao formato atual depois de longuíssima evolução, são capazes de promover genocídios (de armênios, de judeus, de tutsis…) e são capazes de esculpir o Davi, ou, para usar as imagens evocadas pela poeta polonesa: “escrever ‘Mein Kampf’ / ou o ‘Ursinho Puff’”. Desnecessário explicar o que significa a imagem. Vale a pena, porém, dizer que neste “ou”, nesta conjunção adversativa cabe a história humana até hoje.
Para encerrar com pergunta bastante semelhante a que usei para encerrar aquela aula: e nós, o que é que estamos fazendo com nossas mãos?
Despeço-me das senhoras e dos senhores e desejo ótima semana!