Em homenagem aos 10 anos da Editora Kalinka, o Unibes Cultural sediou a palestra “Dois dedos de prosa sobre literatura russa” neste domingo, 3 de junho, com o tradutor e jornalista Irineu Franco Perpetuo e os editores Jorge Sallum, da editora Hedra, e Daniela Mountian, da Editora Kalinka.
Em um primeiro momento, Jorge e Irineu discutiram motivos para justificar o alcance e a penetração da literatura russa no cenário cultural brasileiro, já que temos tão poucos descendentes por aqui. Procurando uma justificativa histórica, Irineu comenta que a Literatura Russa enquanto sistema nasce com Puchkin (1799-1837), mas só penetra efetivamente no Ocidente quando a França se debruça nos romances russos.
Nesse mesmo momento, o Brasil girava ao redor da esfera cultural da França. “Ou seja, se os franceses estavam lendo russos, a gente também estava lendo russos. Se a França achava que a literatura russa era importante, a gente achava também”, afirma Irineu. Mas como explicar a razão para continuarmos a lê-los até hoje?
Para isso, Irineu conta que parte importante da literatura russa foi feita sob forte censura do regime czarista. Dessa forma, não havia espaço para discussões humanísticas, como a sociologia, a filosofia ou a política, e a literatura assumiu um papel que outras ciências humanas não podiam. Os debates intelectuais acabavam sempre ao redor da literatura e da crítica literária. Tanto que, até hoje, a literatura se tornou central na sociedade russa. O desenvolvimento que as amarras geraram pode ser um dos motivos para o apelo no público brasileiro.
Jorge Sallum, ao trilhar esse caminho, complementa as explicações. Partindo do seu interesse de editor, Jorge foi procurar o que mais vendia da literatura russa. O resultado pode parecer óbvio. A liderança era ocupada por Dostoiévski, Tolstói e Tchekhov. Em sua explicação para as vendas desses autores, Sallum tentou afunilar a fundamentação partindo do que é mais visível. Em primeiro lugar, tanto a Rússia quanto o Brasil possuem um vasto território. Além disso, ambos têm um Estado muito forte que se estruturou a partir de um regime escravocrata. Por fim, Jorge ressalta que as discussões realizadas pelos autores russos passam, assim como no caso dos brasileiros, pela esfera da questão teológica mais do que em outras áreas.
Ao fim dessa parte da apresentação, com mais perguntas do que respostas, Daniela Mountian mostrou o catálogo da Editora Kalinka, com a intenção de localizar suas publicações numa linha cronológica. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, segundo Mountian, a editora tem a intenção de trazer a Literatura Russa do fim do séc. XIX e do começo do XX, onde estão nomes menos conhecidos pelos leitores brasileiros e menos publicados no mercado editorial.
Se seguirmos a divisão da Literatura Russa tradicional, entre Século de Ouro e Século de Prata, a Kalinka se preocupou mais com o segundo período, que vai de 1894 até 1924. A Era de Prata floresce com um simbolismo russo que, diferente do francês, começa no século XX e tem seu ápice em 1910, com uma forte renovação artística para a Rússia. “O Simbolismo é o início do modernismo russo”, afirmou Daniela.
Em primeiro lugar, tanto a Rússia quanto o Brasil possuem um vasto território. Além disso, ambos têm um Estado muito forte que se estruturou a partir de um regime escravocrata. Por fim, Jorge ressalta que as discussões realizadas pelos autores russos passam, assim como no caso dos brasileiros, pela esfera da questão teológica mais do que em outras áreas.
Nesse sentido, o livro publicado representativo desse momento foi escrito por Sologub, chamado O Diabo Mesquinho (1902). A narrativa retrata o enlouquecimento de um professor numa pequena cidade e, segundo a editora, esse “ simbolismo tem uma pegada decadentista”. Ainda que “o misticismo da Rússia possa ter parado no século XIX, ele foi apreendido de outras maneiras pelos escritores”, disse Daniela. Um exemplo disso é a forte influência que Dostoiévski é para o Sologub. Outro movimento contemplado pela editora foi o acmeísmo, um movimento de renovação na Rússia marcado pela poesia de Anna Akhmátova e contemplado numa edição artesanal sobre a Poesia Russa.
Já nos anos 1920, Dobýtchin aparece no catálogo como um representante do modernismo russo. Daniela o caracteriza como “um grande estilista, ultravanguardista. Não há história, não há enredo em sua produção”. Citando o crítico Iuri Sukhikh, Daniela diz que “Dobýtchin, diferentemente de Tchekhov, é modernista ao extremo. Historicamente ele se remete a Tchekhov, assim como Tchekhov a Puchkin. Tchekhov repele o enredo; Dobýtchin o destrói, direcionando a narrativa visivelmente para uma sucessão de detalhes”. Dessa forma, as mudanças nas narrativas não são mostradas por meio do enredo, mas pela linguagem, pelos detalhes, objetos.
Como publicação ligada ao absurdismo, Kalinka publicou A Velha, de Daniil Khrams, numa versão bilíngue. Considerada a última vanguarda na Rússia, o movimento se encerrou em um cenário político conturbado na União Soviética, quando os escritores corriam riscos de vida por conta de suas obras.
Terminado esse período, Daniela explicou que o grande passo dado pela editora nos últimos anos foi chegar no contemporâneo e envolver os direitos autorais em sua publicação. Nesse sentido, publicaram uma antologia do poeta contemporâneo Krupriyánov. Ele é conhecido como pioneiro do verso livre, algo que não é bem visto na Rússia, já que destoa de um modelo poético consagrado.
Outro escritor publicado é Dovlátov, fenômeno cultural da Rússia. Com dois livros no catálogo, o escritor escreve em primeira pessoa, pratica o que é comumente conhecido por autoficção e é conhecido por ser um forte frasista. Como exemplo do seu sucesso russo, Daniela contou a anedota de um filme sobre Dovlátov que gerou ansiedade, ficou apenas três dias em cartaz e fomentou diversos debates na Rússia. Enfim, o último autor apresentado foi Friedrich Gorenstein, autor de Salmos (1975). Sua produção retoma o misticismo da tradição russa e está principalmente ligada à questão judaica em solo moscovita.