Um tempo atrás, o Caderno de Cultura d’O Estado de São Paulo trouxe uma matéria (requentada, daquelas que vemos a todo o momento, com uma ou outra alteração) que tinha o seguinte título: As piores traduções de títulos de filmes no Brasil (clique aqui para acessar).
O Brasil tem coisas muito piores a se noticiar do que “as piores traduções de títulos de filmes”. Mas estamos aqui para falar de tradução, e por isso digo: esse título já estava errado quando nasceu, pois mostra que o jornalista responsável (não há nenhum nome, pois são aquelas galerias de fotos com textos engraçadinhos) não teve o mínimo de interesse na matéria que escreveu. Uma pesquisa entre tradutores ou mesmo distribuidoras de filmes revelaria um segredinho que não é segredo para ninguém.
Tradução de título?
Ninguém está falando que o jornalista precisa saber de tudo. Mas tem a obrigação de apurar o material com que trabalha. E essa obrigação, às vezes esquecida, pode trazer muitas dores de cabeça para o jornal e, o que é pior, desinformação aos leitores. A palavra escrita, ainda mais no jornal, é considerada verdade, e as pessoas costumam levar a sério o que leem. Por isso, essa matéria é um ótimo exemplo da mídia a serviço da desinformação.
Alguns amigos disseram para eu me conformar. Outros que eu estava fazendo papel de bobo lendo jornais da grande mídia.
Ninguém está falando que o jornalista precisa saber de tudo. Mas ele tem a obrigação de apurar o material com que trabalha.
Mas voltando ao nosso tema: título se traduz? E se alguém traduz o título, por que ficam tão diferentes dos originais?
A resposta é muito simples: quem escolhe e cria os títulos não é o tradutor, mas o departamento de marketing das editoras e distribuidoras. Ou seja, publicar uma matéria com o título “as piores traduções” já é um erro em si, pois nem sempre (ou quase nunca) são traduções, mas sim criações da área de marketing com base na história do filme, no público-alvo, na compreensão do título por esse público e em outros parâmetros mercadológicos. Tenho uma penca de exemplos de livros, inclusive alguns que traduzi, que tiveram seus títulos recriados ou radicalmente modificados por questões de marketing. Pois filme e livro precisam vender também, certo?
O som da música
Você assistiria a um filme cujo título fosse O som da música? E Inquebrável? Cercas? Pois é, o público brasileiro (e não só) precisa de algo mais apelativo, muito mais atraente no sentido comercial da coisa.
E você assistiria aos filmes A noviça rebelde, Corpo fechado e Um limite entre nós? Esses foram os títulos que os departamentos de marketing das distribuidoras deram aos três filmes acima. Não precisa de muita genialidade para imaginar que não são traduções, mas criações. Meu problema é: publicar uma matéria falando sobre “As piores traduções” automaticamente remete aos tradutores. Que nada têm a ver com o pato. E aí, lembram-se do primeiro “De lá pra cá” (clique aqui), quando conversamos sobre a questão da autoria de um texto? Pois, o texto em português é do tradutor, mas o título nem sempre é.
Lançou nos EUA é sucesso!
Tenho um outro causo para contar sobre preguicite aguda de jornalista. Em 2015, o livro Amon: mein Großvater hätte mich erschossen, de Jennifer Teege e Nikola Selmair, foi lançado nos Estados Unidos e causou uma leve comoção. É a história de uma mulher negra que fora adotada nos anos 70 e, em 2008, descobriu que era neta de um dos carrascos nazistas mais terríveis da história: Amon Göth. Foi notícia no The New York Times, e o jornal O Globo fez uma pequena matéria sobre o livro com base na tradução norte-americana (clique aqui).
Até aí, maravilha.
Porém, o livro Amon: meu avô teria me executado, que traduzi para a editora Agir, foi lançado no Brasil em 2014. Sim, um ano antes do lançamento nos Estados Unidos e um ano depois do lançamento na Alemanha o livro já estava nas livrarias brasileiras. E sabem quantas menções à tradução brasileira existem na matéria d’O Globo? Zero menções na matéria original, que foi atualizada posteriormente, pois deve ter havido c e r t a s p e s s o a s que reclamaram ao jornal quando leram a matéria.
Ou seja, o jornalista responsável não se deu sequer ao trabalho de jogar o nome de Jennifer Teege + livro no Google. Se tivesse, olha a resposta que teria do oráculo internético:
Sem nem rolar a página para baixo, cinco menções ao livro lançado em 2014 e cinco capas para ilustrar.
E daí? Daí que este é um caso de desinformação que atinge meu setor, minha área de atuação, minha profissão, e, diferente do que me recomendaram amigos, não consigo me conformar. Não consigo simplesmente abaixar a cabeça e engolir esse sapinho profissional. Ainda mais quando dei uma passeada nos comentários da matéria – sim, é masoquismo, mas eu fiz isso – e deparei com diversos “Nem tem que traduzir” ou “Esses tradutores só estragam as coisas”. Uma matéria simples, que tinha tudo para ser divertida até, se tivesse sido bem feita, transforma-se em um desserviço sem tamanho. Pois há recriações ruins, claro.
Acho que todo mundo deveria ter espaço para dizer “opa, aqui não” quando alguém fala o que não deve da profissão alheia. Provável que eu tenha feito isto na vida algum dia, falar do que não conheço direito, então, peço desculpas.
Só não ao jornalista que fez essa matéria d’O Estadão. Esse merece, sim, voltar para a faculdade e ter umas aulinhas de apuração.