Não há dúvidas de que Lovecraft foi não só uma pessoa racista, mas também levou seus preconceitos para as páginas de sua ficção. No entanto, o que parece ser pouco aceito pelos fãs do autor é a importância que o ódio racial teve na estruturação da sua obra e da sua cosmologia.
Em H.P. Lovecraft: Contra o mundo, contra a vida, Michel Houellebecq mostra como sua breve morada em Nova York amplificou e moldou o ódio e medo que Lovecraft sentia pelos negros e imigrantes (e isso é fácil de perceber como, por exemplo, nos diversos “povos inferiores” ou “corrompidos” que ficaram degradados por conta da miscigenação).
Apesar disso, é inegável que o universo de Lovecraft se tornou muito maior do que seus contos: jogos, desenhos, filmes e séries tratam do panteão conhecido como “Mitos de Cthulhu” e os terríveis segredos registrados na página do Necronomicon. Muitas vezes, entramos nesse universo sem nem mesmo ler contos como “O Chamado de Cthulhu” ou “O Horror de Dunwich”.
Por conta da força que esse universo de Horror Cósmico tem, muitos autores começaram a fazer releituras críticas à obra do autor estadunidense. Um dos exemplos é Lovecraft Country, do escritor Matt Ruff, que fez sucesso e ganhou uma adaptação pela HBO que deve estrear em agosto desse ano. Além dele, Victor LaValle também fez sua incursão dentro desse mundo com A Balada do Black Tom, muito bem recebido pelo mercado literário: foi vencedor dos prêmios Shirley Jackson, British Fantasy e This is Horror, além de ter sido finalista nos prêmios Hugo, Nebula, Locus, World Fantasy e Bram Stoker.
O movimento que Victor LaValle faz é muito interessante: ele revisita a obra de um autor problemático, extraindo o que é possível e criticando o que há de execrável em um romance curto e rápido.
Aqui no Brasil, o romance foi publicado em 2018 pela Morro Branco, com uma tradução de Petê Rissati. Em sua juventude, LaValle fascinou-se pelo mundo de Lovecraft e seus deuses antigos. Ao crescer, no entanto, ele, um escritor negro, começou a notar as problemáticas que envolviam a obra do autor e decidiu revisitar um dos contos problemáticos: “O Horror em Red Hook”.
Logo em sua dedicatória, LaValle apresenta os sentimentos que guiam seu trabalho: “Para H.P. Lovecraft, com todos os meus sentimentos conflitantes”. A partir daí acompanhamos a história de Charles Thomas Tester, um personagem negro que vive apenas com seu pai em um bairro periférico e precisa fazer bicos para se virar e pagar as contas. No entanto, aos poucos Charles se vê imerso em uma trama ocultista com deuses antigos e rituais sanguinários.
Nessa trama, LaValle apresenta o outro lado do ritual apresentado no conto de Lovecraft. Ele inverte o ponto do vista do investigador branco perturbado para desconstruir a monstruosidade dos oprimidos: o monstro que surge “naturalmente” da miscigenação e da corrupção instintiva passa a ser um fruto da injustiça e violência, como mostram as cenas de desumanização brutal que os policiais impõem aos que moram nas periferias de Nova York.
Ao longo do romance, o escritor usa ou adapta muitas das técnicas lovecraftianas para construir sua narrativa, como a valorização dos edifícios, o destaque aos outros sentidos do corpo, como o olfato, e livros obscuros com conhecimentos proibidos. O fascínio surge não apenas como um impulso irrefreável, mas também pelas soluções que possibilita – é um poder que seduz.
O movimento que Victor LaValle faz é muito interessante: ele revisita a obra de um autor problemático, extraindo o que é possível e criticando o que há de execrável em um romance curto e rápido. E aos fãs de H.P. Lovecraft com sentimentos conflitantes, LaValle também deixa uma surpresa: “um homem de Rhode Island, mas que vivia no Brooklyn com sua mulher, mostrou-se tão persistente que dois policiais foram enviados à sua casa para deixar claro que não era bem-vindo em Nova York. Talvez sua disposição fosse mais bem adequada a Providence. O homem saiu da cidade pouco depois, nunca mais voltou”.
A BALADA DO BLACK TOM | Victor LaValle
Editora: Morro Branco;
Tradução: Petê Rissati;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Setembro, 2018.