Poucos são os escritores contemporâneos de ficção especulativa com a versatilidade e absurda criatividade do britânico China Miéville – um dos principais nomes do New Weird, movimento literário em que a norma é a fusão inovadora de gêneros (horror, mistério, fantasia, romance histórico etc.) e a influência de autores clássicos do terror como H.P. Lovecraft. Com nove romances publicados, além de coletâneas de contos e obras de não-ficção, Miéville tece verdadeiras fábulas psicológicas que celebram o grotesco, o estranho e o irreconhecível em cenários distintos de qualquer clichê dos gêneros em que trabalha.
Infelizmente, apenas dois dos romances de Miéville estão disponíveis em português, publicados pela Boitempo Editorial. Felizmente, tratam-se de dois dos melhores exemplos da escrita incendiária, inovadora e altamente politizada do autor: Estação Perdido, um épico fantástico ambientado em uma metrópole mutante e imensamente industrializada, e o deliciosamente complexo A Cidade & a Cidade, livro que alçou o nome de Miéville a novos patamares, popularizando sua obra e arrebatando algumas das maiores premiações da fantasia e do sci-fi.
Com A Cidade & a Cidade, ao mesclar a estrutura básica da literatura policial a questionamentos existenciais que lhe renderam comparações a Kafka, Miéville se revela um escritor capaz de criar narrativas implacáveis que entretêm ao mesmo tempo que suscitam reflexões perturbadoras, implorando por releituras e novas interpretações.
Duas cidades, dois universos
O protagonista da obra é o inspetor Tyador Borlú, habitante da cidade-estado de Besźel, metrópole fictícia criada por Miéville nos moldes de países do leste europeu. A investigação do assassinato de uma estudante estrangeira desfigurada é o propulsor da jornada de Borlú, que acaba absorvido em uma trama conspiratória que ameaça abalar suas principais convicções quanto à sua cidade e sua própria existência. Empregando uma voz fria e típica da literatura policial, Miéville põe em prática todo o potencial de sua escrita na criação de um protagonista tridimensional e instigante.
Miéville se revela um escritor capaz de criar narrativas implacáveis que entretêm ao mesmo tempo que suscitam reflexões perturbadoras.
O principal diferencial da narrativa, contudo, é a ambientação meticulosamente arquitetada por Miéville: Besźel é uma cidade impossível, que ocupa o mesmo espaço geográfico de uma segunda metrópole, Ul Qoma. As duas cidades coexistem espacialmente, mas operam como Estados fundamentalmente distintos – com seu próprio idioma, arquitetura, instituições, cultura e costumes. Tanto voluntariamente quanto inconscientemente, os habitantes de uma cidade levam suas vidas ignorando a existência do espaço estrangeiro – e das pessoas que nele habitam – invadindo o seu. Caso falhem em “desver” a outra cidade, violando o preceito que estabelece o equilíbrio entre os dois Estados, os cidadãos de Besźel e Ul Qoma são detidos por uma instituição intermediária denominada simplesmente “Brecha” – e seu destino após isso é desconhecido.
Com uma trama veloz e vertiginosa, a leitura do romance é um mergulho irresistível na metafísica urbana das estranhas metrópoles de Ul Qoma e Besźel. Não é à toa que uma adaptação televisiva da série foi anunciada para 2018: A Cidade & a Cidade é, sem dúvidas, uma das maiores obras de ficção especulativa da última década.
A CIDADE & A CIDADE | China Miéville
Editora: Boitempo;
Tradução: Fábio Fernandes;
Tamanho: 292 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2014.