Besźel e Ul Qoma são duas cidades completamente distintas: elas têm suas próprias moedas, idiomas, ruas e departamentos. No entanto, elas também se distinguem de qualquer outra cidade. Isso porque elas ocupam (praticamente) o mesmo espaço geográfico. Sendo assim, uma rua que começa em Besźel pode terminar em Ul Qoma. Um prédio vago em uma cidade pode ser um café maravilhoso na outra. O cheiro de um ensopado sentido por um turista pode estar, na verdade, cruzando uma fronteira – ilegal.
Os moradores e visitantes dessas cidade não podem, de maneira alguma, habitar a outra cidade sem passar por um prédio oficial em comum, o Copula Hall. Todo aquele que transpassa os limites entre as cidades de maneira clandestina gera uma brecha. Tais transgressões são severamente punidas pela onipresente organização responsável pelas fronteiras entre as duas cidades, a também chamada Brecha.
Por isso, cidadãos e turistas passam grande parte da vida aprendendo a discernir as estruturas, roupas, cheiros e carros de cada lugar. Dessa forma, qualquer irregularidade vista é logo desvista, no melhor estilo fluído de alienação que nos lembra, de alguma forma, o Ministério da Verdade e os duplipensamentos de George Orwell em 1984.
Em seu livro A cidade & a cidade, traduzido por Fábio Fernandes, o que China Miéville propõe é a investigação de um assassinato envolvendo escândalos políticos, radicais unificacionistas e o surgimento de conspirações arqueológicas entre as duas cidades. Numa trama noir clássica, acompanhamos o trajeto do investigador Tyador Borlú e sua jornada entre as cidades.
China é um dos grandes nomes da ramificação da literatura fantástica conhecida como new weird, explicada nesse texto aqui da Escotilha, publicado pelo Luciano Simão. Ele nos explica que esse movimento literário parte grande parte da influência de H. P. Lovecraft e seu horror cósmico. Isso porque o New Weird se propõe a uma fusão de gêneros, como horror, mistério e fantasia, e a construção de uma sensação constante de estranhamento.
Miéville não está sozinho nessa produção, tendo ao seu lado autores como Jeff VanderMeer e K.J. Bishop, mas é um dos mais politicamente engajados. China é ex-membro do Partido Socialista dos Trabalhadores, um dos fundadores do partido marxista Left Unity e tem uma forte produção acadêmica de pegada marxista, além de estudos sobre a história da Rússia – também alinhado com a Boitempo, responsável pelos livros do autor no Brasil.
Luciano Simão diz que “sua habilidade em construir universos próprios de forma minuciosa e absolutamente original está evidenciada em qualquer um dos dez romances publicados, dos quais dois estão disponíveis em português”. É essa característica que mais se destaca durante a leitura de A cidade & a cidade.
Luciano Simão atribui ao livro traços de “metafísica urbana” e “delírio kafkiano”. Acrescento às suas considerações as presença das alienações sociais vistas nas distopias modernas, como 1984, e a construção de uma trama detetivesca no melhor estilo noir.
Ao longo da narrativa, China nos apresenta traços arquitetônicos, cheiros, roupas, as ruas das duas cidades de maneira bastante íntima e a percepção das duas cidades se torna vívida. Como também diz Simão, é “um dos poucos verdadeiros arquitetos de mundos na ficção especulativa contemporânea”. Não é desmerecido o fato do livro ter ganhado diversos prêmios internacionais, incluindo o Hugo.
Em seu livro, as relações de poder e as estruturas sociais aparecem de maneira aprofundada. Elementos como movimentos sociais, tramas de poder, exploração capitalista e envolvimento do Estado com empresas também são bastante esmiuçados em sua narrativa e refletem questões de sua formação intelectual.
Ressalto aqui a parte acadêmica e arqueológica da trama. Evitando qualquer tipo de revelação que prejudica o andamento da narrativa, é possível dizer que a maneira com que as questões ideológicas, manipulações de pesquisa, brigas de ego e políticas que envolvem a produção científica dentro do livro são bastante interessantes, principalmente no que diz respeito à conspiração que surge.
Luciano também resenhou esse livro aqui na Escotilha e o atribuiu traços de “metafísica urbana” e “delírio kafkiano”. Acrescento às suas considerações as presença das alienações sociais vistas nas distopias modernas, como 1984, e a construção de uma trama detetivesca no melhor estilo noir.
A CIDADE & A CIDADE | China Miéville
Editora: Boitempo;
Tradução: Fábio Fernandes;
Tamanho: 396 págs.;
Lançamento: Outubro, 2015.