No dia 17 de julho, a Câmara dos Representantes dos EUA anunciou a morte do congressista John Lewis aos 80 anos de idade. Ele já sofria com um câncer de pâncreas há anos, mas dessa vez não resistiu. Na ocasião da morte, Barack Obama tuitou que “poucos de nós vivem para ver nosso próprio legado se desdobrar de uma maneira tão significativa e notável” como Lewis viveu. Em 2011, Obama concedeu a ele a Medalha da Liberdade, a maior distinção civil nos EUA. Nem mesmo Donald Trump deixou de homenagear o congressista em sua conta no Twitter, o chamando de “herói dos direitos civis”.<
Apesar da sua importância na luta pelos direitos sociais na sociedade estadunidense, a história de Lewis ainda é pouco conhecida no Brasil – ainda que, em outubro de 2018, John tenha enviado uma carta a Mike Pompeo, secretário de Estado, dizendo ter “fortes preocupações” com a crescente “ameaça à democracia, aos direitos humanos e ao Estado de Direito no Brasil”. Suas maiores preocupações surgiram a partir do tipo discurso que elegeu Bolsonaro, da violência política, das notícias falsas e da desinformação social.
Sua preocupação é só mais um dos exemplos que mostram que, apesar da sua doença, Lewis nunca deixou de ter preocupações sociais. No início de junho, mesmo afastado devido ao tratamento contra o câncer, ele retornou a Washington para dar apoio aos protestos pela morte de George Floyd, elogiando o ato por sua inclusão e força. Ele chegou a dizer que “o vento está soprando”, anunciando uma grande mudança.
Para contar a história de John Lewis, o selo Nemo, da editora Autêntica, traduziu o quadrinho A Marcha, escrito por John Lewis, Andrew Aydin, diretor digital e assessor político no escritório de John Lewis, e Nate Powell, quadrinista responsável por best-sellers como You Don’t Say e The Year of the Beasts, além de ser o primeiro cartunista a vencer o National Book Award. A HQ está divida em três volumes e os dois primeiros já foram lançados por aqui em abril de 2018 e 2019, respectivamente.
Nesses dois volumes de A Marcha acompanhamos a formação de John Lewis desde quando ele era uma criança do interior, que dava sermões e fazia batismos em pintinhos, até seus grandes atos na década de 1960. Esses momentos no passado aparecem intercalados com situações do presente, quando vemos Lewis e Barack Obama juntos no cenário da política estadunidense.
Durante sua formação, John aparece como um garoto sonhador, buscando melhorar a vida de sua comunidade. Ouvindo nos rádios os sermões de pastores fervorosos, Lewis sente que pode lutar usando sua habilidade comunicativa como arma. Além disso, todas as suas inquietações assumem ares de certeza quando ele ouve e se identifica com os discursos de um jovem chamado Martin Luther King Jr.
A partir daí, sua jornada começou a correr em paralelo com a de King, ainda que elas se cruzassem diretamente poucas vezes. Em A Marcha, podemos ver a estruturação do seu pacifismo radical como arma na luta contra a segregação racial. Logo no início de seus estudos, vemos Lewis liderar um grupo de jovens negros para sentarem nas mesas e balcões que eram “dos brancos” durante as refeições. Também chegaram a fazer ações parecidas em bilheterias de cinema. Um processo árduo, que durou muito tempo e escancarou as hipocrisias da sociedade estadunidense.
Em A Marcha, podemos ver a estruturação do seu pacifismo radical como arma na luta contra a segregação racial.
Em pouco tempo, John passou a integrar o grupo dos 13 Freetown Raiders, os 13 Viajantes da Liberdade que rodaram o sul dos Estados Unidos nos anos 1960 lutando contra a segregação no transporte público. Ainda que fosse oficialmente proibida, as viagens eram organizadas no intuito de escancarar a segregação racial colocando negros e brancos sentados lado a lado durante a viagem. Em pouco tempo, os estados começaram a ignorar a decisão da Suprema Corte: por onde passaram, foram recebidos com pedradas, ônibus foram incendiados, pessoas gritaram: “matem esses negros”.
Em alguns anos, o movimento cresceu até a passeata de 1963. O quadrinho mostra os bastidores desse grandioso momento, um dos maiores atos de adesão popular aos movimentos de direitos civis americanos. Foi durante essa manifestação que Martin Luther King Jr. disse a história frase: “Eu tenho um sonho”. John Lewis era o último representante a discursar nessa manifestação que estava vivo.
O segundo volume de A Marcha acaba em um momento de tensão e violência. Dois anos depois da passeata, Lewis foi uma das 600 pessoas que estava nas Marchas de Selma a Montgomery de 1965. Uma das últimas cenas é do episódio que ficou conhecido como Domingo Sangrento, a primeira dessas marchas. O movimento pacífico, que pedia o direito efetivo ao voto, foi recebida pela polícia de Alabama com violência. Lewis foi um dos diversos feridos, ele teve o crânio fraturado e quase morreu.
O terceiro volume é um importante momento de conclusão da trajetória de John Lewis, ainda que não tenha sido traduzido. O que a leitura de A Marcha faz é ressaltar a importância da luta pelos direitos iguais – e, ainda que John Lewis possa atingir um certo patamar de figura mítica, é possível notar que a verdadeira importância está na adesão social, na presença dos cidadãos. Além disso, na proximidade de sua morte, o quadrinho é um importante marco para preservar a memória e o legado do John Lewis.
A MARCHA | John Lewis, Andrew Aydin e Nate Powell
Editora: Nemo;
Tradução: Érico Assis;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Abril, 2018.