Todos os leitores de Annie Ernaux sabem que a obra da escritora francesa, que é tida como um dos principais nomes da chamada autoficção (embora ela mesma rejeite o rótulo), centra-se em torno de um mesmo tema: a elaboração de narrativas em torno de sua infância pobre em um bairro de operários na França e dos desdobramentos de sua história ao longo de sua vida profissional e pessoal.
Em A Outra Filha (editora Fósforo, 2024, tradução de Marília Garcia), Ernaux volta-se mais uma vez a uma questão íntima (sua e de sua família): a convivência em ausência com uma irmã mais velha que morreu aos 6 anos de difteria, antes do seu nascimento. Ginette viveu pouco, mas deixou a sua “sombra” no futuro dos pais e da irmã, que muitas vezes sentiu que sua vida se desdobrava como uma reação à morte de quem veio antes dela.
Mais uma vez, esta é uma história sobre o silêncio, sobre algo que os pais preferiam não falar com a filha.
Mais uma vez, esta é uma história sobre o silêncio, sobre algo que os pais preferiam não falar com a filha (nesse sentido, lembra um pouco Os Meninos Adormecidos, de Anthony Passeron, e O Livro Branco, de Han Kang). Só que, nesta interdição sobre o que pode ser mencionado (e lembrado e, por fim, elaborado), o que resta é uma presença algo fantasmagórica que é apropriada pela imaginação infantil de maneira criativa, gerando uma culpa em Annie Ernaux por ser aquela que sobreviveu.
É isso que ela vai revelando nessa espécie de carta escrita à Ginette, relembrando das vezes em que foi referida pela mãe (sempre tratada por “ela”) por frases jocosas como “ela era mais boazinha do que aquela ali”. Na mente infantil, a irmã mais velha ganha ares de santa, enquanto Annie (que além de nascer, sobreviveu a uma possível morte por tétano) lida com o fardo de estar aqui.
A Outra Filha, portanto, é a própria narradora, e não a irmã ausente.
A história de uma irmã
A Outra Filha começou a se constituir quando Annie Ernaux foi convidada por uma editora, nos anos 2000, a escrever uma carta para a coleção “Les Affranchis”. Ela decide, de forma ousada, falar com a irmã morta. Surge então uma obra que é simultaneamente forte e delicada, e que sem dúvida encontra eco nos sofrimentos não-ditos de muitos de seus leitores.
Aos poucos, ela vai encontrando palavras que ajudam a tecer a narrativa sobre o desconforto que sentiu ao longo da vida, como o não-pertencimento à própria família (tema recorrente em seus livros, como em O Lugar e A Vergonha) e a sensação de ter sido “o que sobrou”. Em certo momento, ela constata que provavelmente só nasceu porque a irmã morreu, uma vez que os pais não teriam dinheiro para criar as duas.
Em boa parte do livro, é a mente de criança que assume o controle da narrativa. Isso faz a escritora ir rememorando aspectos do passado familiar e procurando pistas sobre as consequências da ausência da filha mais velha, cuja existência ela só descobriu quando tinha dez anos. Ela passa, por exemplo, a comparar os semblantes nas fotos dos pais antes e depois da tragédia que os acometeu.
O que A Outra Filha vai descortinando é que, mencionados ou não, os ausentes se mantêm presentes. E geram elucubrações que nunca poderão ser desvendadas, como quando a escritora conclui, de maneira contundente: “não escrevo porque você morreu. Você morreu para que eu escreva”. Pode não ser um dos melhores livros de Annie Ernaux, mas, ainda assim, é uma leitura muito potente e provocativa.
A OUTRA FILHA | Annie Ernaux
Editora: Fósforo;
Tradução: Marília Garcia;
Tamanho: 66 págs.;
Lançamento: Agosto, 2023.
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