No dia de seu aniversário, um sujeito chamado Jorge acorda, escova os dentes, faz a barba. Corta o rosto acidentalmente. Pensa sobre as compras do mercado. Resolve não sair de casa. Em um longo solilóquio, ele parece conversar com alguém que não está ali. Aos poucos entendemos: ele mantém um diálogo imaginário com um homem que causou um trauma a ele, há trinta anos, mas cuja participação na sua história e de sua família saberemos mais adiante.
Jorge, o narrador, é um homem negro que tece, na primeira parte do livro, suas elucubrações sobre a vida e sobre o que acontece hoje no Brasil. Este é um cidadão típico do seu país, que tem suas opiniões vazias sobre política, que vê conspirações pelo ar, que navega em grupos de WhatsApp e não parece se importar muito sobre se o que circula por lá é verdade ou não.
Ele opina: “você sabe, meu amigo, que isso não pode ser bem assim. O mentiroso pode estar perdido, pode ser que ele apenas suspeite, não tenha certeza absoluta, de que aquela informação seja falsa. A mentira faz parte, ela está presente na vida de todos que desejam um convívio social minimamente razoável (…). A mentira é ferramenta de consolo”.
Assim começa Agora Agora, segundo romance do escritor carioca Carlos Eduardo Pereira, publicado pela editora Todavia, que constrói um intrincado caleidoscópio familiar que amarra três Jorges: o neto, o avô e o filho. Os três são homens negros cujas existências atravessam os momentos históricos do Brasil, em que os contextos sociais se reconfiguram, mas algo sempre permanece: a opressão às pessoas negras, seja ela evidente ou velada.
O resultado do plano imbricado pelo escritor para contar esta história é o nascimento de um romance muito inspirado, em que humor e tragédia caminham juntos. Mas, sobretudo, o que se vê é um retrato muito bem engendrado que conta a história deste país.
‘Agora Agora’: as histórias dos Jorges
Se a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa, como um dia escreveu Karl Marx, podemos dizer que as existências dos Jorges, ainda que diferentes, evidenciam a permanência de um problema. O primeiro Jorge Ferreira, o avô, é apresentado em uma cena sintomática: ele está dormindo no modesto Grito da Mocidade, um clube para negros que fundou no início do século XX. Ele é acordado pela mulher, Creusinha, que está grávida. Ela encontra Jorge largado com uma mulher enroscada entre suas pernas.
Agora Agora parece, de certa forma, um livro homenagem à ancestralidade de todos estes homens e mulheres, mas também um grito de revolta
Temos então acesso à história deste homem, um sujeito explorado como tantos outros, mas cuja teimosia e amor pelo Carnaval e pelo samba fez com que ele ousasse abrir um clube para os pretos, que estavam, em boa parte, postos à própria sorte em um Brasil sempre racista. Neste período histórico, vale lembrar, estamos no contexto do fim da escravidão, cujo decreto de extinção não foi suscitado exatamente por questões humanitárias.
Neste sentido, Agora Agora se propõe, de maneira muito inteligente e sutil, a constituir um panorama vasto sobre os impactos do racismo estrutural na vida de todos os brasileiros que descendem de pessoas escravizadas. E se este é um problema que atinge a todas as pessoas negras, sem exceção, o fato é que as mulheres negras estão no posto mais baixo da cadeia de discriminações. As mulheres, como Creusinha, são constantemente violentadas (ela apanha do marido na mesma cena em que o flagra com a amante) e criam os filhos do jeito que dá quando os homens somem.
É este Jorge – um homem amante das artes e que é esmagado na mesma medida que esmaga os que estão abaixo dele – que se torna um testemunho vivo da história. Os trabalhos que sobram a ele são os que os brancos não topam fazer.
Não por acaso, Jorge encena no Grito uma peça chamada O Filho Maldito, enquanto tem que lidar com os protestos (muitas vezes apenas imaginados por ele) por estar destinando seus esforços a “uma presepada dessas” ao invés de dedicar toda a sua energia a algo que sustente sua família. Em uma espécie de vórtex que parece infinito, é esta a semente que gerará os outros Jorges. Todos parecem fadados à mesma sina.
Um retrato da história do racismo no Brasil
Agora Agora parece, de certa forma, um livro homenagem à ancestralidade de todos estes homens e mulheres, mas também um grito de revolta. Há vários trechos belíssimos que reverenciam memórias destas famílias cuja cultura tem sido constantemente massacrada.
Em um destes trechos, há uma descrição de um velório, e fala-se da crença de que demonstrar pesar em uma situação como essa atrai mais morte. “Dá azar conversar de tristeza em momentos de morte, mais do que isso até, não é nem questão de azar, o caso é que a Morte quando chega para levar alguém ela não se contenta com uma vida apenas, a Morte quer mais – quando tem que levar um de nós para outro mundo, a Morte geralmente aproveita a fresta aberta para levar logo três”, escreve Pereira.
Como o passar do tempo entre as gerações, a perda (ou pelo menos o esquecimento) destes referenciais torna-se uma espécie de arma em prol dos opressores. Conforme sugere o romance, é apenas isso que pode explicar porque pessoas negras, como o Jorge Neto, abraçam um negacionismo sobre o racismo, que passa a ser como uma frescura – um “mimimi”, em uma das expressões que circulam por aí. Sujeitos que, com uma ajuda dos poderes estatais, enxergam as instituições policiais e militares como uma possibilidade de uma vida melhor – mesmo que isso signifique abrir mão da própria história.
A chave para a compreensão deste livro parece estar na epígrafe escolhida por Carlos Eduardo Pereira para abrir seu livro: “o futuro pertence aos mortos. Já os mortos, os mortos só pertencem a si mesmos”. Um romance perturbador e divertido na mesma medida, Agora Agora é uma leitura obrigatória no Brasil de 2022.
AGORA, AGORA | Carlos Eduardo Pereira
Editora: Todavia;
Tamanho: 216 págs.;
Lançamento: Setembro, 2022.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.