Toda a obra do catalão Enrique Vila-Matas é uma variação sobre a crise literária que jamais começou e que nunca terá fim. Quando tudo já foi produzido, o que é possível produzir? Essa parece ser também uma crise do capitalismo, um cenário em que todos possuem aquilo que precisam, mas caso deixem de consumir gera-se um colapso irrefreável. Bartleby e companhia, que ganhou há pouco uma reedição da Companhia das Letras, escancara essa literatura de impossibilidades e obstruções — para usar um termo do cineasta dinamarquês Jørgen Leth.
Vila-Matas deu corpo, essencialmente, a uma literatura do não. Não chega a ser aquilo que Umberto Eco chama de autoinvalidação — até porque o catalão usa da literatura como elemento de confirmação —, mas há um jogo entre realidade e ficção, algo bastante característico da produção vilamatiana. Nesse prisma, Bartleby e companhia é a grande afirmação de uma negação constante, uma negação que guarda parentesco não apenas com o personagem de Melville, que serve de modelo para toda uma caterva, como também de Kafka.
A cada escritor que se nega, que se anula diante do seu próprio fazer literário, Vila-Matas cria uma afirmação. É o jogo matemático de menos e menos é mais. E é também o eterno problema de autoria, do mash-up que constitui uma totalidade a partir de vários pedaços — como um mosaico de casos de azulejo — como em Mac e seu contratempo. Há sempre uma sensação de embuste e labirinto, de encenação e falácia.
E, ao mesmo tempo, o autor constrói uma enciclopédia borgeana do imaginário. É uma artimanha da literatura pós-moderna que percorre boa parte da produção de Paul Auster — de quem Vila-Matas é grande amigo —, e se fez personagem do romance que abre a A Trilogia de Nova York; Borges, e seus inúmeros blefes narrativos; Don Delillo, que se apoia na realidade imediata para compor uma ficção engajada e silenciosa; Cristovão Tezza, que a partir d’O Filho Eterno tem buscado mais e mais o factual para incorporar o ficcional. Ian McEwan, o grande manipulador inglês, usa dessa falsa realidade em muitos de seus livros, entretanto, em nenhum o mergulho é tão profundo quanto em Amor sem fim.
Para ler Vila-Matas é preciso a calma de quem caminha pelas ruas de uma cidade sabendo que não vai chegar a lugar algum.
Não é surpresa, portanto, que Vila-Matas brinque com a noção de literatura. Se considerarmos que um relato só é ficção quando é revelando, mesmo à socapa, que essa natureza artificial, Bartleby e companhia coloca o leitor em xeque, contra a parede.
Em Os Exploradores de abismos, a artista francesa Sophie Calle aparece como uma mulher às vezes de qualquer estereótipo que se espera no mais tênue padrão contemporâneo. Nesse sentido, Vila-Matas se aproxima de performance literária e perplexidade como elemento narrativo. É um jogo de imitações — que é, por sinal, a força-motriz de Ar de Dylan e Suicídios exemplares. Enquanto no primeiro existe mesmo a materialidade da semelhança, no segundo isso acontece num plano figurativo — seus personagens espelham a vida para encontrar a morte. O que interessa ao catalão é aquilo que não serve para ninguém e dessa matéria-prima oblíqua nasce uma espécie de inconclusão.
Bartleby e companhia é, como Doutor Pasavento, uma apologia ao lado esquerdo. Em ambas as obras, Vila-Matas explora o vazio e a desconstrução. Num momento em que tudo é para ontem, Enrique Vila-Matas restaura uma literatura de lentidão e esgotamento. Não existe como lê-lo de supetão. É a preciso a calma de quem caminha pelas ruas de uma cidade sabendo que não vai chegar a lugar algum.
BARTLEBY E COMPANHIA | Enrique Vila-Matas
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Josely Vianna Baptista e Maria Carolina de Araújo;
Tamanho: 184 págs.;
Lançamento: Março, 2021 (atual edição).