No posfácio de Narrativas do espólio, o tradutor e pesquisador Modesto Carone adverte que o título do volume não é exatamente um nome, mas sim uma classificação das histórias que compõem o livro em questão, de Franz Kafka (1883 – 1924). Os textos são as sobras daquilo que o escritor checo produziu e que não chegou a ser publicado em vida. Max Brod, amigo fiel e herdeiro literário do autor d’O Processo, encarregou-se de reunir os breves relatos e transformá-los em uma obra única e essencial para os leitores kafkianos.
Considerando que apenas um sexto da produção de Kafka chegou à luz do dia enquanto o escritor estava vivo, Narrativas do espólio é um importante e conclusivo apanhado que percorre os anos de 1914 a 1924, ou seja, pouco antes d’A Metamorfose até o fim de sua atormentada e confusa vida. Muitos dos contos são alegorias como “Pequena fábula”, “À Noite” e “Poseidon”, ou exercícios textuais a tratar do Direito, tema que permeou boa parte de seus escritos, como em “Sobre a questão das leis” e “Advogados defesa”. “Blumfeld, um solteirão de meia-idade”, segundo texto do compêndio e um dos mais longos, é um dos contos mais interessantes de Kafka e, facilmente, poderia estar em A Contemplação ou O Médico rural.
É interessante percorrer o livro à procura de elementos que demonstrem a evolução do artista. Para Kafka, a literatura sempre foi a sua salvação – ao passo que os relacionamentos (quase sempre turbulentos) eram a sua danação, o seu processo, como gostava de se referir à noiva Felice Bauer –, chegando a abandonar o “vantajoso” emprego em uma companhia de seguros de Praga para se dedicar a escrever em tempo integral.
Ainda que não seja um livro de estudos, Narrativas do espólio é uma obra para leitores avançados e mais interessados na literatura como arte – em sua essência – muito mais que nas histórias que o checo tem a nos contar.
Narrativas do espólio, como se pode esperar, não é um livro com unidade, ao contrário, mas é fundamental para que se possa compreender o raciocínio daquele que foi um dos grandes escritores do século XX e influenciou nomes como Elias Canetti, Beckett, Cortázar, Macedônio Fernandez e Borges.
Na pele
É clichê dizer que temos muito a agradecer a Bord. Se ele tivesse seguindo as ordens do amigo – que deixou dois testamentos em que pedia para seus textos fossem destruídos –, a literatura não seria a mesma. A vida, como diz o ditado, é mais estranha que a ficção: o fim de parte da família Kafka, em um campo de concentração nazista, parece muito ter saído dos textos de Franz. Como em A Colônia Penal, as irmãs do escritor tiveram sua sentença e crimes tatuados na pele.
Por outro lado, as narrativas que encerram a produção literária de Kafka confirmam o caráter fragmentário de sua arte. O checo nunca foi um homem de por termos naquilo que fazia – fosse o que fosse, sempre deixava algo em aberto. Com seus textos não é diferente: boa parte deles está incompleto ou teve partes perdidas, como no caso d’O Processo e d’O Castelo. Ainda que não seja um livro de estudos, Narrativas do espólio é uma obra para leitores avançados e mais interessados na literatura como arte – em sua essência – muito mais que nas histórias que o checo tem a nos contar.
NARRATIVAS DO ESPÓLIO | Franz Kafka
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Modesto Carone;
Tamanho: 232 págs.;
Lançamento: Junho, 2002.