Na década de 1950, na Itália do pós-guerra, uma mulher de 42 anos vive a vida esperada a ela e a todas as outras. Ela cuida do marido e dos filhos, já adultos, arruma a casa, prepara a comida para todos. Como a família tem dificuldade financeira, também atua como auxiliar administrativa num escritório. Mas tudo começa a mudar quando algo acontece na sua vida: ela compra um caderno.
Este é um pequeno resumo que considero justo do impactante Caderno Proibido, livro publicado em 1952 pela escritora ítalo-cubana Alba de Céspedes, e que foi lançado no Brasil pela Companhia das Letras. O romance causou um pequeno furor e é reconhecido como uma das referências para a obra de Elena Ferrante, que também captura, com uma simplicidade que esconde suas múltiplas camadas, as diferentes esferas no feminino.
E é bem fácil lembrar da autora de A Filha Perdida ou A Vida Mentirosa dos Adultos quando visitamos Caderno Proibido. Trata-se de uma espécie de romance epistolar que é narrado pela protagonista Valeria, que há anos só é chamada de “Mamãe” pelo marido. Ela é condicionada ao seu lugar social como dona de casa e cuidadora, até que o caderno lhe dá possibilidades de elaborar melhor seus sentimentos e deixar que algumas verdades venham até ela.
Trata-se, obviamente, de uma obra que dialoga com a psicanálise, uma vez que Valeria só começa a se entender – ou a se desconhecer, como ela diz, em certo momento – à medida em que transforma seu inconsciente em linguagem. Primeiramente, ela compreende o caderno como uma bobagem, pois ela não teria nada a dizer: seu dia a dia parece permeado apenas pelas suas obrigações cotidianas, as quais repete religiosamente como se fossem naturais.
Como ocorre com quem ousa “falar para dentro”, logo as coisas começam a se complexificar para Valeria. Ela adentra em um exercício de autoanálise que surpreende pela capacidade revelada por Alba de Céspedes de capturar o âmago das mulheres de sua época (e das que seguiram desde então). Valeria escreve: “com frequência reclamo que faço muita coisa, que sou escrava da família, da casa; que nunca tenho a oportunidade de ler um livro, por exemplo. Tudo isso é verdade, mas em certo sentido essa escravidão se tornou também a minha força, a auréola do meu martírio (…). Devo reconhecer que a determinação com a qual me defendo de qualquer possibilidade de repousar talvez não passe de medo de perder essa única fonte de felicidade que é o cansaço”.
‘Caderno Proibido’: submissão e desejo
Aos poucos, a escritura do caderno faz com que Valeria reconheça que tem desejos. Que, aos 42 anos, ela não é a mulher velha como costuma ser tratada. Ela passa a criar outras visões sobre si, distanciando-se da dos familiares: o marido, Michele, que está frustrado com a própria vida e não tem tempo ou paciência para conversar com ela, ou os filhos, Riccardo e Mirella, que buscam construir suas vidas, ainda que de modos tortos à visão de seus pais.
Trata-se de uma obra que dialoga com a psicanálise, uma vez que Valeria só começa a se entender – ou a se desconhecer – à medida em que transforma seu inconsciente em linguagem.
Mirella, aliás, é uma personagem que funciona como um belo contraponto para que Valeria possa confrontar-se com as suas certezas. Como fruto de sua época (não somos todos?), Valeria entra em conflito com a filha por ela querer ter uma carreira e não ter vontade de se casar, o que seria o caminho mais digno para uma mulher.
Mas esta disputa ocorre ao mesmo tempo em que Valeria avalia sobre as consequências do seu próprio caminho e de suas escolhas. Ela redescobre a possibilidade se apaixonar-se com o chefe do escritório, o que faz se sentir viva novamente. Ao mesmo tempo, isso lhe dá a noção da invisibilidade perante os olhos do marido: “perguntei-me se para Michele eu ainda sou uma mulher viva ou, como sua mãe, já não passo de um retrato na parede”.
A riqueza da escrita de Alba de Céspedes se dá sobretudo pela lucidez e pela franqueza com que ela desenvolve os pensamentos de Valeria. Ela é uma personagem complexa, repleta de nuances, que se vê envolta pelo reconhecimento de seus desejos, ao mesmo tempo que é impassível quanto à possibilidade da filha de fazer o mesmo. Talvez o mais impressionante é que Caderno Proibido opere como uma ferramenta de acesso à subjetividade feminina com todos os seus percalços.
Ainda que a palavra não apareça no romance, poderíamos talvez categorizar a personagem como machista – até porque seria inevitável que, com sua trajetória, não fosse assim. Isto é construído de maneira muito clara. “Com o passar dos anos, percebo que minha mãe, quando falava da vida da mulher e dizia coisas que me irritavam, no fundo tinha sempre razão. Dizia que uma mulher não deve nunca ter tempo, não deve jamais ficar ociosa, porque do contrário logo começa a pensar no amor”, Valeria escreve em seu caderno.
Seguir a jornada destinada a ela – crescer, casar-se, criar os filhos, cuidar dos netos e morrer – é algo que, conforme vamos entendemos a partir da sua tessitura das palavras, algo que a aprisiona, mas também a liberta. É ao construir este complexo fio narrativo, em que nenhuma solução é simples, que Caderno Proibido encontra a sua força e permanece como uma obra perene, mesmo passados 70 anos de seu lançamento.
CADERNO PROIBIDO | Alba de Céspedes
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Maio, 2022.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.