As nuances do universo feminino estão cada vez mais proeminentes no ambiente literário. E, dentre as escritoras que exploram esta grande temática, algumas delas a abordam por um aspecto rico, embora pouco visto: o horror. Habitam nesta seara nomes como os da argentina Mariana Enríquez, da americana Shirley Jackson e da sul-coreana Bora Chung, autora do livro de contos Coelho Maldito (editora Alfaguara, 2024, tradução de Hyo Jeong Sung).
As dez histórias compartilhadas por Chung na obra participam de um universo onírico marcado pela fantasia, pelo mágico e pelo pesadelo. Elas conseguem unir elementos do folclore coreano (influência assumida pela escritora) com as pequenas atrocidades que cercam a vida das mulheres todos os dias.
O horror está na nossa rotina. Esta parece ser uma das mensagens difundidas no livro, repleto de símbolos explorados de formas sutis ou explícitas. Um deles está no coelho do primeiro conto, o que dá título à coletânea, e que se refere a um objeto capaz de carregar uma maldição e destruir a vida de todos que tocam nele.
Por outro lado, o animal é também uma representação da fertilidade e da procriação, tema caro às vidas das mulheres e que aparece no melhor conto do livro, que fala de uma moça que fica grávida por conta de excesso de anticoncepcionais e precisa correr para encontrar um pai para a criança (em entrevista à Folha, Chung diz ter tirado inspiração para a história em uma vivência pessoal).
Os medos femininos, portanto, povoam a coleção de Bora Chung, que envolve questões familiares, como o pavor de se ver no escuro sozinha, a fobia da velhice, a competição entre mulheres, o temor do avanço da idade e os fetiches sexuais. Se o mundo é essencialmente assustador, há toda uma categoria de desassossegos que parece se destinar exclusivamente a nós.
A moralidade no folclore
Talvez se possa dizer que Bora Chung brilha realmente quando fica aquém da moralidade, e coloca os dois pés apenas para visitar o sinistro e o grotesco.
Finalista do International Booker Prize, vale também ressaltar aqui que Coelho Maldito explora ainda a linguagem do folclore, utilizada em obras canônicas que analisam a psique feminina – como, por exemplo, Mulheres que Correm com os Lobos, da psicóloga norte-americana Clarissa Pinkola Estés. Faz-se referência aqui a obras que, por meio das alegorias presentes nas lendas, discutem questões submersas e que tocam na qualidade do que é humano.
Nos contos de Bora Chung construídos partir desse gênero, há as histórias mais carregadas de algum tipo de mensagem moral. Aparecem então pessoas que se veem lidando com as consequências de sua ganância e egoísmo, por exemplo, e que inevitavelmente se dão mal, em uma espécie de justiçamento divino.
São interessantes, mas talvez se possa dizer que a autora coreana brilha realmente quando fica aquém dessa moralidade, e coloca os dois pés apenas para visitar o sinistro e mesmo o grotesco. É o que ocorre, por exemplo, na história de uma mulher que vê surgir uma cabeça dentro da privada, que é formada dos seus excrementos depositados por anos e que a chama de “mamãe”.
Mais do que pender para o risível, esse relance ao que hoje alguns chamam de “terror feminista” é muito mais original – e assustador – que as mensagens mais óbvias. É esse lado de Coelho Maldito que nos prende e nos encanta a partir daquilo que todas já conhecemos.
COELHO MALDITO | Bora Chung
Editora: Alfaguara;
Tradução: Hyo Jeong Sung;
Tamanho: 232 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2024.
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