Não ali, com o nó atado à força na garganta. Não ali, dentro de um ônibus, em meio à aridez do itinerário do mundo. Era preciso que a dor gritasse em um lugar só meu. No conforto do meu desconforto. No sangrar das angústias. Naquele dia, voltei para casa mais cedo. Eu queria pôr fim a tudo o quanto antes. Eu queria terminar de ler Desonra.
Já havia dias e eu perdia-me pelos percursos de uma trama muito bem arquitetada sobre descompasso, desconserto, desgraça. Desonra esboça a vida David Lurie, professor de uma universidade da Cidade do Cabo – capital legislativa e, portanto, uma das principais metrópoles da África do Sul – que tem de se afastar do cargo após se envolver com uma de suas alunas. Acusado de assédio e temendo um escândalo que maculasse ainda mais a sua reputação, Lurie se refugia na fazenda da filha, Lucy, na província do Cabo Oriental. É no interior de uma África em chagas pós-apartheid que o protagonista vê suas idiossincrasias caírem por terra.
Vivendo uma realidade rural, em que seu prestígio intelectual e seus julgamentos morais em quase nada importam, o personagem encontra-se inerte, com “a alma suspensa na bile escura, amarga, escondida”. Assim, absorta, prostrei-me diante da violência das não-relações, da não-adequação a um tempo-espaço, da sensação de impotência. Diante das verdades antropológicas de uma das sociedades mais violentas do mundo, em que o estupro, violação da honra feminina, é um problema nacional.
O dilema que Coetzee propõe reside na inversão das relações de poder deflagradas em um continente fragmentado, de grupos sociais, valores e regras de conduta díspares.
O dilema dorsal que J. M. Coetzee propõe reside na inversão das relações de poder deflagradas em um continente fragmentado, de grupos sociais, valores e regras de conduta díspares. As noções de crime e de castigo são muito relativas em Desonra. Todas as vidas – ou honras – parecem passíveis de ser destruídas. A falta de parâmetro desnorteia o leitor.
A clareza e a fluidez do texto são desconcertantes. Com uma prosa direta, sorrateira até, o sul-africano dá provas de que ao grande escritor os efeitos de linguagem muito sofisticados ou herméticos são dispensáveis. Nas linhas dolorosas de Desonra, Coetzee é cirúrgico. Em tão pouco, diz tanto. Machuca tanto. Após sua leitura, senti-me invadida. Violada.
O Contra dessa capa representa uma bravata: leia mais.
DESONRA | J.M. Coetzee
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: José Rubens Siqueira;
Tamanho: 248 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2000.
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