Se você ler Dois (Tordesilhas, 2017), de Oscar Nakasato, apressadamente, vai concluir: mais um romance sobre dois irmãos em conflito. Mais um romance sobre memória. Mais um romance sobre a última ditadura militar do Brasil. Se ler e tiver o cuidado de refletir, verá que Dois, que já teve resenha publicada no portal, não é mais um. O segundo romance do premiado autor de Nijonhin (Benvirá, 2012) é uma análise sobre o Brasil profundo contemporâneo.
As epígrafes guiam o leitor até Jorge Luis Borges, Milton Hatoum e Joubert de Carvalho – este, autor da canção “Maringá, Maringá”. E se poderia referenciar Machado de Assis (o conto “Esaú e Jacó”, que trata do confllito entre dois irmãos) ou os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, embora, em entrevistas, Nakasato tenha preferido citar Rashômon, de Akira Kurosawa, que adaptou os contos “Rashômon” e “Dentro do bosque”, de Ueda Akinari. As obras japonesas discutem a questão do ponto de vista e da verdade objetiva e suas versões subjetivas.
Sob a máscara de Zé Paulo, o mais velho de quatro irmãos, Nakasato apresenta um personagem conservador, criado sob repressão e que acredita na opressão como instrumento pedagógico. E Zé Eduardo, o irmão sete anos mais novo, é o libertário, criado com amor pela mãe Cidinha e pela irmã Maria Luísa. As diferentes personalidades colidem não apenas num conflito familiar, por suas visões de mundo opostas. Também se confrontam no plano ideológico, representando as faces de uma nação rachada sob pólos ideológicos distintos.
Uma das virtudes de Nakasato é a de ser um narrador capcioso, tentando nos convencer que está contando a história de um conflito familiar. Mas o autor busca analisar, através de uma síntese, a esquizofrenia da identidade nacional. Sob a voz do relojoeiro Zé Paulo, a ordem, o progresso, a disciplina, a obediência ecoam ideologias reacionárias, como o racismo:
Uma das virtudes de Nakasato é a de ser um narrador capcioso, tentando nos convencer que está contando a história de um conflito familiar.
“Eu conhecia aquela gente, era um povo de nariz empinado, eles achavam que eram melhores que nós, que não podiam se misturar. Eu ouvia a japonesada conversando na feira, aquela língua esquisita que ninguém entendia e riam, riam, como se estivessem rindo da gente. Não consigo entender, tantos anos no Brasil, e aqueles velhinhos, aquelas velhinhas, por que não aprendiam a falar português? E esta história de que são mais inteligentes do que nós, todo mundo falava, japonês é inteligente, mas isso não é verdade, a ciência já provou, você está na universidade e já deve saber disso melhor do que eu, não tem uma raça mais inteligente que outra.” (Página 26)
Interessante que o autor se desloque do ponto de vista étnico, adotado em Nihonjin para criar um narrador que vocaliza o estereótipo. E também revela que o racismo do filho foi adotado, já que o pai lhe dizia: “menino que toma café fica preto”. Embora a rememoração seja de Zé Eduardo, que graças ao seu pensamento divergente, adquirido pelo conhecimento sonegado nas salas de aula, encontrado em publicações clandestinas, como ele relata, conseguiu se libertar de uma ideologia que condena a diferença: não só os japoneses, como também os negros e as mulheres.
Através do contraponto dos narradores, o romance resgata a história do Brasil recente, agora contada não apenas por autores brancos descendentes de europeus, mas também pelas minorias. Vozes menores, mas não minoritárias, como as de Maria Valéria Rezende, Conceição Evaristo e Rosângela Vieira da Rocha compõem um panorama sobre a história do Brasil visto por olhares diversos.
Zé Eduardo é o retrato da miscigenação brasileira, casado com uma asiática e praticante do Budismo, depois de passar anos no exílio e ter sido prisioneiro político, acusado de subversão, por ter participado do Congresso de Estudantes em Ibiúna, em 1968. Eventos e personagens históricos, como o líder guerrilheiro Carlos Marighela e o estudante maringaense Antonio Três Reis, são resgatados e miscigenados à ficção.
Dois é menos profundo do que Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, o clássico que trata das fissuras e traumas da família brasileira, e menos político do que Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Mas é uma narrativa que comprova a necessidade de contar a história do Brasil sob as mais diferentes perspectivas. Para a literatura, a objetividade é um fracasso e a subjetividade narra a tragédia do cotidiano, disfarçada sob os conceitos simplificadores de harmonia e felicidade.
Oscar Nakasato é um escritor brasileiro, neto de japoneses. É professor universitário e Doutor em Literatura Brasileira, autor da tese Imagens da integração e da dualidade: personagens nipo-brasileiros na ficção, publicada em 2010, e do romance Nihonjin (2012), vencedor dos prêmios Benvirá de Literatura (2011), Nikkei – Bunkyo de São Paulo (2011) e Jabuti (2012).
DOIS | Oscar Nakasato
Editora: Tordesilhas;
Tamanho: 184 págs.;
Lançamento: Novembro, 2017.