O estudo da mitologia de povos antigos é uma atividade fascinante. Afinal, os mitos são registros de como a humanidade construiu conhecimento ao longo dos séculos. A partir da observação do mundo natural, cada povo extraía suas conclusões de acordo com as limitadas informações que possuía. O que é o sol? É uma carruagem de fogo puxada por deuses. O que são as chuvas? São bençãos da deusa da fertilidade e das colheitas.
Além disso, os mitos também podem ser considerados a forma mais antiga de narrativa de que temos registro e portanto estabelecem as bases de toda a ficção, tanto na literatura como em todas as outras artes que contam histórias. Por meio de longos épicos ou histórias episódicas, os mitos apresentam personagens complexas na forma de reis, heróis, deuses, mortais e monstros e os desafios que enfrentam em suas jornadas. Os mitos frequentemente trazem narrativas multidimensionais e contêm reflexões sobre os mais variados aspectos da condição humana.
Assim como os povos que as estabeleceram, as mitologias são infinitamente variadas e carregam o legado histórico-cultural da própria humanidade. Entre os diversos mitos a que ainda temos acesso, um dos conjuntos narrativos de maior impacto cultural são as histórias e personagens da mitologia nórdica, que influenciaram Wagner, Tolkien e até mesmo os quadrinhos da Marvel.
A tragédia dos deuses
Boa parte do que hoje conhecemos por mitologia nórdica está contida nos Eddas, textos do século XIII que chegam até nós sob duas formas: o Edda em verso e o Edda em prosa. Enquanto a autoria dos poemas que compõem o Edda em verso é coletiva e anônima, o Edda em prosa costuma ser atribuído ao historiador e poeta islandês Snorri Sturluson, e é, ao meu ver, a forma mais interessante de acessar os mitos nórdicos nos dias de hoje.
O Edda em prosa é composto de quatro partes e visava cumprir a função de veículo de transmissão da cultura oral dos poetas nórdicos (skalds), ensinando técnicas poéticas e as principais narrativas que esses poetas deviam conhecer. O texto foi produzido em uma época em que a cultura viking já se assimilava ao cristianismo, mas ainda via nas crenças pagãs do passado uma parte preciosa do seu legado cultural, digno de preservação.
O cerne do Edda em prosa está na seção “Gylfaginning”, ou “O engano de Gylfi”. Trata-se da história do rei Gylfi, que se disfarça para obter informações dos deuses, mas acaba por ser ludibriado pela sabedoria incomparável de Odin. Ao travar um duelo de conhecimentos com o pai dos deuses, Gylfi fornece a mais rica base de informações que temos dos principais episódios da mitologia nórdica.
Os episódios narrados no Gylfaginning são diversos e relatam eventos como as grandes batalhas de Thor contra os gigantes, a morte do deus Baldur e o aprisionamento do trapaceiro Loki. As narrativas de Odin culminam na batalha final do Ragnarok, que trará a ruína para os deuses de Asgard.
O panteão nórdico é especialmente fascinante devido à sua natureza trágica. Odin conhece os pormenores da sua própria morte, do fim do seu reino e de quase todos os seus filhos e companheiros. Tenta, em vão, encontrar uma forma de conter ou atrasar o inevitável; mas, assim como os mortais, está fadado a cumprir seu destino e enfrentar o fim da sua existência.
Essa janela dos tempos é, ao meu ver, o valor insubstituível do Edda em prosa, mas é uma obra recomendada para qualquer leitor interessado em mitologia.
A janela do tempo
As histórias contidas no Edda em prosa já foram narradas, adaptadas, modernizadas e reinterpretadas à exaustão sob diversas formas, notadamente na coletânea Mitologia Nórdica, de Neil Gaiman, e (de forma muito deturpada) em histórias em quadrinhos e filmes como Thor: Ragnarok.
Contudo, pode-se argumentar que ainda há grande valor na leitura dos mitos nas fontes primárias, que trazem uma imensa riqueza de detalhes acerca da forma como viviam, pensavam e sonhavam as pessoas daqueles tempos. O que consideravam importante e o que para eles não tinha relevância como tem para nós? O que temiam e o que achavam cômico? O que almejavam alcançar ao longo da vida (e além dela)? Em relação à cultura dos vikings, o Edda em prosa fornece vislumbres variados e valiosos.
Por que todo homem deveria morrer com as unhas cortadas? Porque as unhas dos guerreiros mortos são usadas para construir um navio infernal, Naglfar, que trará o exército dos mortos na batalha final. Por que o salmão é um peixe mais estreito no rabo? Porque Loki, ao tentar fugir dos outros deuses sob o disfarce de um salmão, foi apanhado por Thor com força divina na parte traseira do corpo, deformando a espécie para sempre. Por que é necessário oferecer as aparas da fabricação dos sapatos aos deuses? Porque é com esses restos que os deuses produzirão a bota que o deus Vidar usará para matar Fenrir, o lobo do fim dos tempos.
Além de curiosas, essas questões evidenciam a preocupação dos vikings com aspectos particulares do seu universo: por exemplo, a importância dos peixes, das marés e de uma morte honrada e correta. Reflexões como esta permeiam toda a leitura da obra e enriquecem o conhecimento dos próprios mitos.
Essa janela dos tempos é, ao meu ver, o valor insubstituível do Edda em prosa, mas é uma obra recomendada para qualquer leitor interessado em mitologia.