Há uma máxima que diz que a história da humanidade é escrita pelos vencedores. Ouso contra-argumentar que, ao menos no mundo contemporâneo, quem escreve a história são os jornalistas. Independentemente dos esforços daqueles que estão no poder, o jornalismo de qualidade é capaz de expor o que está oculto nas sombras, revelando ao público a verdade sobre acontecimentos, crimes e atrocidades que os dirigentes do mundo querem manter escondidos.
Uma das grandes tragédias do século XX foi o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki pelo exército americano no fim da Segunda Guerra Mundial. O uso das bombas atômicas em centros populacionais, um ato jamais repetido até os dias de hoje, foi racionalizado pelos responsáveis como uma decisão sem a qual seria impossível pôr fim à guerra no Pacífico, bem como uma ação justificável como retaliação pelo ataque a Pearl Harbor. Ainda hoje, há quem defenda ferrenhamente essa posição.
Apesar disso, é de conhecimento amplamente difundido que a bomba atômica revelou horrores até então inimagináveis, com seu legado de radiação e deformidades, de cânceres e mortes lentas e tristezas sem fim. No imaginário popular, essas imagens foram perpetuadas graças à arte, com canções como “Rosa de Hiroshima” (poema de Vinicius de Moraes musicado por Ney Matogrosso) e filmes como Hiroshima, Meu Amor (1959).
Porém, essas obras de arte só foram capazes de discutir tais temas graças ao trabalho jornalístico desenvolvido anteriormente. É por isso que Hiroshima (1946), obra do jornalista estadunidense John Hersey, é um livro tão crucial na história do século XX.
o jornalismo de qualidade é capaz de expor o que está oculto nas sombras, revelando ao público a verdade sobre acontecimentos.
A tragédia humanizada
Hiroshima foi concebido não como um livro, mas como uma longa e detalhada reportagem que seria veiculada ao longo de quatro edições da revista The New Yorker, uma das mais conceituadas e célebres publicações jornalísticas do mundo, conhecida pela qualidade literária dos seus textos e pela profundidade de apuração dos fatos reportados.
No entanto, quando receberam o riquíssimo material produzido por Hersey, os editores tomaram a acertada decisão de dedicar toda a edição de agosto de 1946 à sua reportagem. Com o sucesso estrondoso da edição, Hiroshima foi publicado como livro e desde então jamais saiu de circulação, tamanho seu impacto na cultura e na história do jornalismo americano.
O sucesso de Hiroshima e sua continuada relevância se baseiam em três pilares principais. O primeiro é o timing de sua publicação: escrita e divulgada apenas um ano após os bombardeios, Hiroshima foi a primeira reportagem feita in loco com tal riqueza de fontes e informações diretas fornecidas pelos sobreviventes do desastre, revelando pela primeira vez o tamanho da atrocidade cometida por aqueles que autorizaram o ataque a Hiroshima e Nagasaki com as bombas Fat Man e Little Boy.
A segunda grande força da obra de John Hersey são as suas personagens: por meio de relatos aprofundados obtidos após extensas entrevistas com as fontes, Hersey apresenta um altíssimo grau de apuração jornalística, trazendo uma enorme riqueza de detalhes tanto sobre o bombardeio em si quanto sobre a vida desses sobreviventes antes, durante e após o desastre. Desta forma, Hersey humaniza a tragédia e expõe diante do mundo a inegável factualidade do ocorrido.
Os primórdios do novo jornalismo
Por fim, o terceiro ponto que sustenta a obra é a qualidade da escrita do autor, que emprega técnicas até então pouco comuns no jornalismo ocidental tradicional. A prosa íntima, adjetivada e cuidadosamente estruturada nos moldes de um romance eleva o grau de subjetividade e permite maior conexão com as personagens centrais dessa incalculável tragédia.
De fato, Hiroshima é considerado um dos primeiros exemplos do que viria a ser conhecido como New Journalism, movimento que buscou diluir as fronteiras entre literatura e jornalismo, fazendo uso de técnicas da literatura e intensa experimentação estilística, resultando em alguns dos mais interessantes trabalhos jornalísticos produzidos no século XX.
Nos Estados Unidos, nomes como Gay Talese, Hunter S. Thompson e Tom Wolfe dariam continuidade ao legado de Hersey como os principais expoentes desse “novo” jornalismo, que na verdade é apenas uma vertente do jornalismo literário praticado até hoje em diversas outras nações do mundo, inclusive no Brasil.
Não é à toa que o livro ainda é leitura obrigatória em praticamente todo curso de Jornalismo no mundo; uma pena que não o seja para outros cursos também, porque Hiroshima é uma obra que precisa ser lida, relida e discutida, e as histórias desses corajosos sobreviventes de um dos atos mais atrozes de todos os tempos merecem ser celebradas para sempre.
HIROSHIMA | John Hersey
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Hildegard Feist;
Lançamento: Setembro, 2002 (atual edição).
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