“Todos os meus relacionamentos são assim, uma constante avaliação do intuito da mandíbula que se fecha ao redor da minha cabeça. Tipo, ele está brincando ou está com fome? Em outras palavras, tudo, até o amor, é uma violência”. Esse trecho de Luxúria, incensado romance de estreia da escritora Raven Leilani, resume boa parte da história contada aqui. A protagonista, uma jovem negra de 23 anos chamada Edie, foi acostumada a confundir afeto com a falta dele. Ela tem muito pouco na vida: seus pais estão mortos, ela mal tem dinheiro para comer, trabalha numa editora hipster apenas para preencher uma cota, e transa loucamente com seus colegas de trabalho por falta de algo melhor para fazer.
O título “luxúria”, desta forma, carrega um certo cinismo, pois mesmo que Edie faça muito sexo ao longo do livro, sua vida é, essencialmente, muito ruim. Suas buscas pelo prazer têm mais a ver com um certo prazer masoquista do que necessariamente com alguma satisfação. Acima de tudo, Edie é profundamente solitária. Não consegue formar vínculos com ninguém – mesmo com aquelas que seriam suas iguais, outras mulheres negras, mais “comportadas” para não incomodar em espaços prioritariamente brancos.
Luxúria não é um romance de grandes acontecimentos, mas sim de sutilezas – que se destacam, sobretudo, nos comentários ácidos de Edie ao longo do texto.
Nesta busca melancólica por sentido através do sexo e do afeto, ela se aproxima de Erick, um homem branco 23 anos mais velho que ela, e casado, com uma suposta relação aberta. Eles se aproximam num flerte virtual que evolui lentamente, para frustração de Edie. Quando Erick desaparece nas conversas de texto, Edie dá uma de stalker e resolve aparecer na casa dele. Chega aí o ponto de virada da trama: lá, Edie cruza com Rebecca, a esposa de Erick, que sabe quem ela é. Em uma situação bastante confusa, a mulher acaba convidando Edie (que havia sido despejada do apartamento) a morar um tempo com eles.
Há um certo tom surrealista nesta trama, pois há momentos em que a inverossimilhança se evidencia. Mas isso não é o mais importante. Luxúria não é um romance de grandes acontecimentos, mas sim de sutilezas – que se destacam, sobretudo, nos comentários ácidos de Edie ao longo do texto. A grande tônica do livro tem a ver com a tensão de cunho racial que se revela entre a protagonista e o casal branco – que tem uma filha adotiva, Akila, que é negra, e não convive com nenhum negro em sua vizinhança.
Fica subentendido, portanto, que o interesse de Erick e Rebecca em Edie tem muito menos a ver com luxúria e mais com o desejo de que ela se torne uma ponte de comunicação com a própria filha. A menina é quase um espelho de Edie: uma criança rejeitada, que passou por vários lares e se acostumou a perder tudo com que se importa.
A relação entre as duas passa a se desenvolver de uma forma meio espinhosa. Edie é a “namorada do pai”, mas talvez seja a primeira pessoa parecida com ela que Akila encontrou na vida. Elas compartilham algo que os pais da menina não conseguem ver nem entender: os meandros do que significa ser uma pessoa negra, tendo que aprender a lidar com coisas que os brancos não conhecem (como, por exemplo, ser sempre visto como suspeito pela polícia). Edie se torna uma espécie de professora da menina, que a ensina a lidar com os cabelos, a penteá-los, a usar os produtos certos.
O curioso, mais uma vez, é a provocação do nome do livro se chamar luxúria, uma vez que ele fala mais de dor que de prazer. Mas, acima de tudo, diria que ele fala de mulheres e no que elas significam umas para as outras. As relações mais ricas da obra são as que Edie constrói com outras mulheres.
Além de Akila, há uma bela tensão permanente entre Edie e Rebecca, que representam dois pólos. Rebecca, uma mulher impecável, com tudo sob controle (até o desejo do marido por outras), é uma médica legista cujo trabalho é dissecar outros sujeitos e entender, como quem desmonta um brinquedo, como funciona a vida. Já Edie é uma artista que não consegue terminar suas telas – mas que passará a fazer isso por estímulo de Rebecca.
E, por fim, a relação mais interessante talvez seja a inexistente na trama, que é de Edie com sua mãe, uma mulher dependente de drogas que se suicidou. Ela relembra a mãe enquanto tenta pintar o seu rosto. Nestas reflexões, conclui: “talvez as mulheres da minha família não devessem ser mães […]. Elas estavam morrendo por dentro do próprio corpo, e agora todas essas partes mortas são a minha herança”.
Uma história de vazios e excessos, Luxúria não é uma obra fácil. É um romance provocativo, que permanece na memória do leitor, perturbando-o, depois que se encerra.
LUXÚRIA | Raven Leilani
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Ana Guadalupe;
Tamanho: 232 págs.;
Lançamento: Setembro, 2021.