Em geral, costuma-se dizer que a vida é muito curta, mas para muitas pessoas esse clichê não faz muito sentido. A escritora Lucia Berlin, por exemplo, nos faz pensar: quantas vidas podem caber dentro de uma vida?
Professora, escritora, telefonista, enfermeira, assistente de médico e faxineira, ela foi tudo isso. As profissões que desempenhamos definem o tamanho de nossa vida? Ou quem sabe então os locais onde vivemos? Ela morou em Santiago, Nova York, Cidade do México e outra meia dúzia de lugares. Ok, talvez os esqueletos no armário deem a medida de uma existência. Ela tinha escoliose crônica, era alcoólatra e separou diversas vezes numa época em que o divórcio era coisa do capeta.
Pois é, não dá pra saber. Porém, podemos afirmar com toda certeza: Lucia Berlin teve uma vida bem louca e foi uma escritora grandiosa.
Manual da Faxineira, lançado pela editora Companhia das Letras com tradução de Sonia Moreira, é uma coletânea de contos que nos apresenta diversos fragmentos biográficos e ficcionais (tô tentando evitar o famigerado termo “autoficção”) que tentam dar conta da turbulenta vida desta escritora nascida no Alasca, em 1936, e que morreu na Califórnia, vitima de um câncer, em 2004.
Uma das características da sofisticada prosa da autora é variar bastante entre o drama mais dilacerante, situações corriqueiras e o bom humor. Há contos que possuem um ritmo parecido com os de um longo romance, em que a autora subverte a expectativa por um clímax e de certa forma esfrega a banalidade da existência na cara do leitor. Mas o mais importante é que ela consegue fazer florescer um desconcertante lirismo de momentos simples, como esperar a máquina fazer o seu trabalho em uma lavanderia.
Há momentos que lembram um pesadelo, como quando o avô dentista pede para a netinha lhe arrancar todos os dentes com um alicate; assim como há momentos de muito humor, como por exemplo no conto em que a protagonista chega em casa bêbada, estaciona o carro, mas não puxa o freio de mão e aí descobre no dia seguinte que ele desceu a rua e bateu em outro. Seus amigos de copo a defendem diante da polícia dizendo que ela estava bêbada, sim, mas não estava dirigindo, então não pode ser culpada pelo acidente.
Uma das características da sofisticada prosa da autora é variar bastante entre o drama mais dilacerante, situações corriqueiras e o bom humor.
Em outras situações, temos o virtuosismo de quem tem pleno domínio da narrativa curta, como em “Ponto de Vista”, no qual a autora escreve o conto ao mesmo tempo em que explica a técnica de como escrever um conto, quais os truques que funcionam e qual seria a reação do leitor a cada trecho. Fora isso, ela faz uma análise crítica detalhada do enredo e do narrador. Ah, e no meio disso, ela de fato nos conta uma história. O resultado é um dos momentos mais geniais da coletânea, possivelmente um dos melhores contos que eu já li.
As constantes mudanças de cidades marcam a sua trajetória não apenas porque enriquecem suas experiências, mas também porque afetam a sua identidade, algo que se reflete em sua linguagem: “Claro que eu tenho uma identidade aqui, e uma nova família, novos gatos, novas piadas. Mas fico tentando me lembrar de quem eu era em inglês”.
São contos que refletem muito sobre a solidão e as dores familiares. O peso do passado, a relação com a mãe e com a irmã doente, a maternidade, todas essas relações são atravessadas por uma prosa bastante afiada que não se abstém de abrir inúmeras feridas: “Eu só vivi tanto tempo porque deixei meu passado para lá. Fechei a porta para tristeza arrependimento remorso. Se eu os deixar entrar, só uma fresta autocomplacente, zás, a porta vai se escancarar rajadas de dor despedaçando meu coração cegando meus olhos de vergonha quebrando copos e garrafas derrubando jarros estilhaçando janelas tropeçando ensanguentada no açúcar derramado e nos cacos de vidro engasgando aterrorizada até que com um último estremecimento e soluço eu torno a fechar aquela porta pesada. E junto os pedaços mais uma vez”.
Outro aspecto impactante do livro é com relação ao alcoolismo. Em diversos momentos, a autora nos coloca na pele de uma dependente química, passando não só pelas humilhações do dia a dia, mas também pelas situações de isolamento e desespero íntimo e supostamente controlado, aquela coisa de guardar um demônio dentro de si, enquanto precisa parecer normal, precisa funcionar em sociedade tal como um robô. Por ser um aspecto biográfico, há uma impacto muito maior em cada palavra, pois o leitor sabe que aquilo é a tradução de um pesadelo vivido pela autora. Inclusive as dilacerantes situações de abstinência me fizeram lembrar dos momentos mais pesados de Trainspotting.
O único porém do livro talvez seja a repetição, pois embora a autora aborde trocentos temas diferentes, ainda assim há diversas situações (a doença da irmã, por exemplo) muito semelhantes que acabam dando uma sensação de que estamos lendo um romance fragmentado, já que são os mesmos personagens indo e voltado, mas que não acrescentam grande coisa ao que já foi contado anteriormente, pois nem sempre funcionam como um novo ângulo a respeito de um mesmo problema.
De qualquer forma, o aviso na capa de que o livro foi eleito entre os 10 melhores do ano pelo New York Times faz todo sentido, já que Lucia Berlin é claramente uma autora muito acima da média, pois suas narrativas primam pelo rigor técnico ao mesmo tempo em que causam um profundo impacto no leitor.
MANUAL DA FAXINEIRA | Lucia Berlin
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Sonia Moreira;
Tamanho: 536 págs.;
Lançamento: Abril, 2017.