Escritor fenômeno no mundo inteiro, basta a leitura de um livro do francês Édouard Louis para entender as razões de seu sucesso. De estilo elegante e límpido, Louis construiu uma obra calcada na sua vida e na realidade de sua família de operários para analisar, sem nenhum aspecto pedante ou academicista, o quanto a sua classe social foi responsável pelas tantas violências que enfrentaram e seguem enfrentando.
Em Monique Se Liberta (editora Todavia, 2024, tradução de Marília Scalzo), o foco de Louis é a sua mãe Monique, cuja história havia sido retratada anteriormente em Lutas e Metamorfoses de uma Mulher. Neste segundo livro, o filho atende a um pedido feito por ela: de que escrevesse novamente retratando o quanto ela tinha sido capaz de transformar sua vida. E é exatamente isso que é feito aqui, de forma condizente com o estilo do francês, sem endeusar ou vitimar a mãe.
Édouard Louis segue investigando, com uma franqueza comovente, o quanto a sua ascensão o faz, às vezes, sentir-se como um traidor do lugar onde veio.
Sua lupa é sociológica. Édouard Louis tenta desvendar, a partir dos primeiros momentos em que Monique tenta se desvencilhar do seu terceiro companheiro violento, a grande quantidade das barreiras que ela precisa enfrentar para desencadear por fim a sua “fuga” – que nada mais é que a tomada de controle da própria vida, depois de tantos anos de uma vida dedicada aos outros.
Mas como fazer isso quando se é pobre? É esta questão incômoda que pulsa pelas páginas do livro. O escritor questiona-se o tempo todo sobre a injustiça da situação da mãe, recusando-se a chamá-la apenas de corajosa (“Ao ler esta história, você também deve se perguntar: Por que alguns fogem, enquanto outros não têm do que fugir”) e a incluindo em uma ampla gama de mulheres pobres (“Quantas mulheres mudariam de vida se tivessem um cheque na mão?”).
Autoanálise franca de um escritor em ascensão

Não foi apenas Monique que mudou de vida. Seu filho Édouard também transicionou para uma outra classe social – o que, de forma paradoxal, envergonhou sua família por conta da exposição, ao mesmo tempo que possibilitou que o escritor ajudasse os parentes.
Assim como Annie Ernaux, Louis segue investigando, com uma franqueza comovente, o quanto a sua ascensão o faz, às vezes, sentir-se como um traidor do lugar onde veio. Ele ainda enfrenta a contradição de entender as próprias condições sociais ao mesmo tempo em que sente raiva dos pais por terem transmitido, a ele e aos irmãos, a violência da qual também foram vítimas.
Ainda assim, foi toda essa a violência que proporcionou que ele “fugisse” e se transformasse algo maior e melhor. São perguntas que não aceitam respostas simples, embora Louis tente encará-las de maneira bastante racional: “sem sofrimento na infância = sem livros publicados = sem dinheiro = sem liberdade possível (…). Eu poderia por fim dizer que nunca conheci liberdade que não seja ao mesmo tempo uma ruptura com a violência e, portanto, que não seja também, de algum modo, a sua extensão”.
É com esse mesmo tipo de franqueza que Édouard vai falando de Monique, com um tom que explicita, em certos momentos, uma espécie de menosprezo sobre a autonomia da mãe. Ele resolve ajudá-la enquanto está em uma residência literária na Grécia. Enquanto isso, parece sempre estar em dúvida se ela realmente vai conseguir se desvencilhar do péssimo companheiro.
Com uma narrativa que nos prende tensos até a última fase (será que ela vai desistir?), Monique Se Liberta soma-se lindamente à obra desse jovem escritor francês, capaz de comover leitores pelo mundo todo com sua narrativa dura e, ao mesmo tempo, libertadora. E talvez seja justamente por essa ligação estabelecida com tantos que sua “traição de classe” seja plenamente justificável.
MONIQUE SE LIBERTA | Édouard Louis

Editora: Todavia;
Tradução: Marília Scalzo;
Tamanho: 96 págs.;
Lançamento: Setembro, 2024.
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