“Na impotência em que me encontrava, esse era um ato – cujas consequências me eram indiferentes – por meio do qual eu tentava arrastar o interlocutor para a visão estarrecedora do real”. Esse trecho de O Acontecimento, da vencedora do Nobel de Literatura, Annie Ernaux, funciona bem como introdução ao estilo da autora.
Publicado pela Fósforo Editora, com tradução de Isadora de Araújo Pontes, a obra é muito maior do que um relato sobre o aborto que realizou aos 23 anos, em 1963, quando era uma universitária em Rouen, ainda que também seja isso.
Ernaux faz, como a própria afirma, estudos etnológicos de si, trazendo da forma mais crua (e, para alguns, até impiedosa) suas memórias, capturando, no limite do possível, a realidade dos acontecimentos. Em O Acontecimento, a autora francesa volta no tempo para narrar sua jornada para dar fim a uma gestação indesejada, fruto da relação que manteve com um jovem estudante de ciências políticas que conheceu durante as férias.
Ernaux está pouquíssimo interessada em encarar esse momento sob um viés filosófico ou moral, não lhe apetece tratar sua escolha como corajosa ou erro grave, mas sim como uma oportunidade literária. Ainda que na França de hoje o aborto já seja legalizado (desde 1975, para ser preciso), o tema não é algo superado, como se viu na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, ou nos Estados Unidos, com Donald Trump.
A francesa faz questão de recriar meticulosamente os eventos que se sucederam.
Ao fim e ao cabo, como cita a própria escritora, é um “acontecimento inesquecível”, que normalmente é silenciado, mesmo com uma lei justa que ampare as mulheres. A escrita de Annie Ernaux é clara, direta, sem recorrer a grandes recursos literários, o que dá um caráter mais potente ao seu desnudar.
Ela é implacável consigo mesma, com suas memórias. Documenta as transformações que seu corpo passa construindo referências por vezes enigmáticas, em outras bem didáticas. Essa característica torna as impressões sobre O Acontecimento curiosas de serem analisadas.
Muitos homens e mulheres julgam a escritora como perversa pela maneira que expõe suas memórias – não são poucos os leitores que sugerem uma espécie de frieza corrosiva, como se ela fosse pouco empática com o ser que lutou para tirar de si. Todavia, é justamente essa busca por distanciamento que imprime em Ernaux uma autenticidade, o que a afasta de outros autores autobiográficos.
A francesa faz questão de recriar meticulosamente os eventos que se sucederam, incluindo até mesmo as tentativas fracassadas e a cena em que o aborto é consumado, mantendo as lacunas de sua memória, pois, para ela, é isso que importa, a sinceridade do relato, a urgência de preservar o que passou para que não desapareça, tampouco seja esquecido.
É uma obra tão pungente que suas 80 páginas podem levar um leitor desavisado a não pensar que elas seguem ecoando ao final da leitura. Porém, elas seguem. Ao entregar em nossas mãos suas memórias, Ernaux deposita em nós parte de sua vida, tornando-nos, assim, corresponsáveis por manter acesa a chama de sua história.
O ACONTECIMENTO | Annie Ernaux
Editora: Fósforo;
Tradução: Isadora de Araújo Pontes;
Tamanho: 80 págs.;
Lançamento: Novembro, 2022.
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