Acompanhar um escritor é um processo às vezes torto, mas rende. Rende porque, se você gosta de um livro dele, independente do porquê, e decide acompanhá-lo, pode ter boas surpresas ao perceber o autor que ele se tornou, talvez para o próprio estranhamento, como se nem leitor e criador imaginassem onde chegaria – e o resultado pode render mais quando o próprio escritor senta em frente ao notebook e redige páginas tentando descobrir o que fez de si, como em O Espírito da Prosa.
Publicado em 2012, após a ascensão crítica e sucesso comercial do devastador e emocionalmente carregado romance-autoficção-tanto faz O Filho Eterno, de 2008, Cristovão Tezza examina uma parte considerável de seu passado em uma relação no mínimo ambígua. Em alguns momentos, parece que estamos sentados à mesa com o autor bebendo café, ambos rindo de tudo que o escritor foi enquanto conta da juventude. O emprego precoce como digitador, a demissão desse emprego não comunicada à família – talvez uma das primeiras rupturas conscientes e gesto de afirmação do infante Tezza -, a recusa inicial aos estudos em grandíssima ironia ao professor acadêmico que se tornou após os 30 anos, e dúzias de lembranças analisadas comodamente de longe, pois na época de publicação desta obra o autor tinha 60 anos, e zomba de si mesmo com tranquilidade.
O curioso é que entre as autoironias existem autodepreciações. Não tanto uma vergonha de como fui ridículo quando mais novo, mas um pesado constrangimento por ter sido de tal maneira, mesmo que olhando o passado à distância às vezes indique não ter sido possível agir diferente. Tezza olha impiedosamente para si e para o momento do Brasil em que cresceu, e a severidade com que olha esses recortes temporais remete às sufocantes autocríticas de A Queda (1956), de Albert Camus, e Memórias do Subsolo (1864), de Fiódor Dostoiévski, ainda que sem a verve corrosiva do francês e sem a profundidade psicológica do russo, respectivamente.
Cristovão Tezza olha impiedosamente para si e para o momento do Brasil em que cresceu.
Ao contrário dos mencionados escribas, Cristovão Tezza dá espaço ao humor como um remédio parcial à sua redação, onde não esconde a influência de seus contextos e o desgosto de perceber, em retrospectiva, como aquilo que ao mesmo tempo o fez bem enquanto descobria mais do mundo e se virava para sobreviver também o afastava e até alimentava preconceitos contra outras parcelas deste mesmo mundo.
Aqueles que já leram sobre a pessoa Cristovão Tezza talvez não se surpreendam tanto com O Espírito da Prosa, apenas lerão sobre o tempo do autor enquanto integrante da trupe de Wilson Rio Apa, o ingresso na vida acadêmica e a moradia na Europa pelo filtro do próprio autor – se já não tiverem lido em alguma entrevista ou evento literário. Para quem nunca se interessou por este lado, o livro traz isso como novidade; para qualquer leitor, este livro apresenta um processo recompensador de quanto um escritor pode olhar para si sem idealizações, quase como se tivesse sido pego de surpresa por alguns fatos. O subtítulo Uma Autobiografia Literária descreve bem a contrapontuada obra de um autor que busca enxergar a si livre de camuflagens ou pedestais, personagem de si mesmo por excelência.
O ESPÍRITO DA PROSA | Cristovão Tezza
Editora: Record;
Tamanho: 224 págs.;
Lançamento: Junho, 2012.