Poderia ter sido apenas outro final de dia entediante para o Sr. Utterson, homem sério (demais) que mal se permite um luxo qualquer, seja uma refeição fora de horário ou uma caminhada sem planos junto a um amigo. Mas justo durante uma de suas andanças ele vê um senhor e… vê, é tudo. Foi até demais para seu comportamento rígido e suas maneiras comedidas, mas qualquer um de seus convivas teria se sentido tão mal quanto ele. Não presenciou nada imoral, apenas viu um homem estranho à sua natureza, mas tão estranho que a mera lembrança dele é repugnante. O Sr. Utterson será obrigado a se lembrar deste homem bizarro, o Sr. Edward Hyde.
O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde, nome real da narrativa tão conhecida pelo compacto nome O Médico e o Monstro, foca nas ações do Sr. Utterson, respeitável advogado em sua cidade, e todas as apresentações a seu respeito mostram não apenas suas maneiras, tão formais e até mecânicas quanto seu círculo social parece ser, mas também de seus clientes. Alguns pedem sigilos, porque ah você sabe, mesmo que não seja nada condenável há sempre uma máscara colada no rosto de alguém, não se pode deixar transparecer emoção alguma, principalmente aquelas inesperadas – e até reprimidas por quem as sente, se julgando negativamente por elas ou por reconhecer um momento de dúvida interna perante uma sociedade tão exata.
O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde, nome real da narrativa tão conhecida pelo compacto nome O Médico e o Monstro, foca nas ações do Sr. Utterson, respeitável advogado em sua cidade.
Pela necessidade profissional e pelo respeito a um amigo (“amigo”), o Sr. Utterson guarda em seus aposentos um testamento perturbador, cuja elaboração o deixava desconfortável em todos os sentidos. Talvez o nosso caro advogado não dissesse nesses termos: ele não via sentido algum naquele documento tão caro para o Dr. Henry Jekyll – como assim em caso de morte todos os bens materiais deveriam ser transferidos sem hesitação para o “amigo e benfeitor Edward Hyde”?
Hyde sequer foi apresentado formalmente pelo Doutor Jekyll a qualquer pessoa, o Sr. Utterson o conheceu por mero acaso e ficou perturbado apenas ao vê-lo, um pedido dessa natureza parecia uma excentricidade insondável, ainda mais porque mesmo conhecendo o cliente há anos, o nome do “benfeitor” inexistia em seu vocabulário antigo, o que deixava nosso advogado ainda mais confuso e preocupado com essa mudança recente do Dr. Henry.
Porém, o mistério é abandonado às pressas: a realidade chama o Sr. Utterson para o assassinato de um de seus conhecidos, um ilustre cidadão da sociedade. A morte dele o assusta pela brutalidade, e algumas vidas em volta o intrigam pelas consequências desta e por outras razões que ele não entende. Talvez tente, se a recente convivência com o Dr. Jekyll continuar boa – o homem tinha sumido um tempo e sua saúde não estava boa, mas nem os empregados dele sabem qual é a “real” condição do nobre doutor.
Quem sabe sobre essa narrativa somos nós. A obra de Robert Louis Stevenson flui com uma linguagem econômica e simples, e próximo do final descobrimos que não é apenas “uma” história. A presença da ciência, embora leve nesse livro, pode lembrar de outras publicações com o mesmo toque – Vinte Mil Léguas Submarinas de Júlio Verne e o Frankenstein de Mary Shelley; além da clara divisão moral entre bem e mal nas revelações finais, embora soe um tanto maniqueísta à nossa época. Pode ser marca do autor e/ou de seu tempo (o livro foi publicado em 1886), mas isso está longe de ser um problema, até porque não é apenas o caso dos senhor Jekyll e Hyde que causa estranhamento, e sim questões sutis sobre a natureza humana, reunião e confronto interno de muitas ideias – e às vezes externo, como mostra essa ficção de Stevenson.
O ESTRANHO CASO DO DR. JEKYLL E SR. HYDE | Robert Louis Stevenson
Editora: Penguin;
Tradução: Jorio Dauster;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Março, 2015 (atual edição).