A história do surgimento, consolidação e derrocada da União Soviética guarda mistérios capazes de suscitar a curiosidade em qualquer ser humano – em especial os aptos a se desvencilhar do binarismo político em que vivemos. São inúmeros os personagens que preenchem a rica história dessa nação continental, do sonho socialista e comunista de um mundo onde imperasse a justiça social. E é a partir de um desses personagens que o escritor cubano Leonardo Padura trouxe O Homem que Amava os Cachorros, lançado em espanhol em 2009 e publicado no Brasil em dezembro de 2013, pela Boitempo Editorial, com tradução de Helena Pitta.
A riqueza da obra de Padura é tamanha, a ponto de criar um livro que pode se desdobrar em outros tantos, quiçá infinitos. Cada leitor gera uma interpretação única, porque ao partir de uma história real, o autor constrói um romance histórico onde realidade e ficção são cruzadas em uma narrativa densa, revelando passagens da história soviética (russa e mundial) com uma riqueza de detalhes próxima de livros documentais, o que deixa claro como foi fruto de uma extensa pesquisa.
Padura se debruça sobre o assassinato de Leon Trótski, intelectual marxista e fundador do Exército Vermelho, um dos líderes da Revolução Russa, ocorrido na cidade mexicana de Coyoacán em 20 de agosto de 1940. O livro é longo (são 592 páginas) e guarda algumas características que o assemelha às grandes obras da literatura russa, como o tamanho, o contexto histórico como base para desenvolvimento da trama e seu prazer em examinar a moral de seus personagens.
O livro é longo e guarda algumas características que o assemelha às grandes obras da literatura russa, como o tamanho, o contexto histórico como base para desenvolvimento da trama e seu prazer em examinar a moral de seus personagens.
A narrativa de O Homem que Amava os Cachorros é intrincada, intercalando a narrativa do assassino, do assassinado e de Iván Cárdenas, um escritor frustrado cuja vida muda de rumo quando conhece um espanhol exilado em Cuba caminhando pela praia. Vou organizar o texto para que o leitor possa compreender com exatidão.
Em agosto de 1940, um homem identificado como belga chamado Jacques Mornard se infiltrou no círculo íntimo de Trótski, àquele tempo vivendo exilado na Cidade do México, e o assassinou com um golpe de picareta de gelo (como a que usam os alpinistas) na cabeça. Acontece que o golpe não causou a morte imediata de Trótski, que conseguiu derrubar seu algoz e o desarmar antes de falecer. Mornard, que na realidade era um nome falso utilizado por Ramón Mercader, passou vinte anos preso no México.
De origem espanhola, Mercader havia sido treinado pela KGB e aceitou a missão de encontrar o ex-líder soviético e assassiná-lo. Mas por que o governo da União Soviética desejava a morte de Trótski? A confusão se inicia com o falecimento de Lênin. Trótski e Stalin travaram uma disputa pela sucessão do partido e do país, saindo o segundo vencedor. Acontece que Stalin passou a perseguir seus adversários, assassinando muitos e exilando outros, entre eles, Trótski. Leon passa a ser perseguido metodicamente, sufocado, cercado, prensado à parede. Tornou-se um preso mesmo além dos limites de seu país, e isso tem motivações claras na divergência sobre os rumos que a Revolução tomava pós-Lênin.
Como todo romance histórico, a obra de Padura tem a peculiaridade de tocar em feridas abertas, especialmente ao trazer os personagens para que eles falem por si, deem seus próprios passos (e testemunhos), inclusive muitos em falso. E mais: O Homem que Amava os Cachorros contrapõe dois homens extremamente idealistas, assassino e assassinado, repletos de mais camadas do que uma análise superficial do crime poderia mostrar.
Esse manejo hábil de Padura entre ficção e realidade não prejudica o livro, mas o torna uma literatura densa que exige dedicação do leitor, muito em virtude de muitas informações e evidências nas linhas da obra. Mas é difícil imaginar O Homem que Amava os Cachorros sem esta composição, afinal, a história dos três personagens centrais ressoam entre si, acusam-se e inocentam-se mutuamente. Soma-se a isso a ótima condução da tradução de Helena Pitta, que segue leal à voz de Padura, proporcionando um romance extasiante.
O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS | Leonardo Padura
Editora: Boitempo Editorial;
Tradução: Helena Pitta;
Tamanho: 592 págs.;
Lançamento: Julho, 2015 (2ª edição).