O indizível sentido do amor (Patuá, 2017), de Rosângela Vieira Rocha, é a rememoração de um luto. A protagonista atravessa o oceano para compreender a perda de José Antônio, seu ex-marido. Em Lisboa, conhece um companheiro de luta armada de José. Com o encontro, espera dissipar as sombras que pairavam em seu relacionamento afetivo.
“Engulo um calmante sem água mesmo, mas não consigo dormir, pela segunda noite consecutiva. Acendo a luz e percebo, consternada, que nada pode iluminar esse quarto, mergulhado na mais funda escuridão. Só consigo enxergar o horror, é como se eu estivesse assistindo às sessões de tortura, posso ver tudo de uma só vez, acontecendo ali, naquele momento e na minha frente, tudo que esteve tão presente o tempo todo e só eu parecia não me dar conta. É impossível parar de chorar por algo tão brutal.” (página 19)
O silêncio foi a única defesa possível para os sofrimentos de quem viveu nas catacumbas. Não havia defesa para os torturados, depois de soltos, a não ser continuar a viver como se nada tivesse acontecido.
A protagonista e José tiveram uma vida intensa de companheirismo. Conheceram-se e logo estavam morando juntos, num alojamento universitário. Preparavam suas pesquisas acadêmicas. Eram os anos de chumbo. José envolve-se com política e é preso. Levado para a Ilha Grande, sofre torturas e conhece outros presos políticos, como o português Alípio de Freitas.
É com Alípio que a protagonista tem a expectativa de obter revelações sobre o período do encarceramento de seu amado. Discreto, José quase nada comentou com a mulher sobre as torturas que sofreu. Depois de libertado, consegue um emprego público e se torna funcionário exemplar. O casal não consegue ter filhos, por conta dos choques elétricos recebidos na prisão.
O estoicismo é a marca do casal: para pouparem-se, não comentam o período vivido na prisão. Vivem em silêncio lado a lado, ele ouvindo música, ela lendo e escrevendo. O pacto de silêncio estabelecido é quebrado com a morte de José. A urgência de saber sobre a dor do amado atravessa a ex-mulher. Assim, ela vai em busca de respostas.
Rosângela Vieira Rocha procura reconstruir as sombras do passado histórico recente no Brasil. Há uma vasta bibliografia, na ficção brasileira, sobre censura e repressão. No período da censura, Sombras de reis barbudos, de José J. Veiga, Zero, de Ignácio Loyola Brandão, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, os três postos no Index – a lista de livros proibidos de circular nos anos 70. Nos anos 2000, vemos surgir relatos de autoras: Aqui, no coração do inferno (2016), de Micheliny Verunschk, e Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende.
O silêncio foi a única defesa possível para os sofrimentos de quem viveu nas catacumbas. Não havia defesa para os torturados, depois de soltos, a não ser continuar a viver como se nada tivesse acontecido. Alguns puderam rememorar, escrevendo sua história. A outros restou o vazio. A vida que é uma ordem, ou um nada, diante da tirania. Os sobreviventes misturaram-se à sociedade, tiveram amores e trabalhos. Alguns puderam contar o que viveram. Outros, como os soldados da Primeira Guerra, que Walter Benjamin descreve, só trouxeram a mudez como testemunha do horror.
Rosângela Vieira Rocha é escritora, jornalista, mestre em Comunicação Social, bacharel em Direito e professora aposentada da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Tem onze livros publicados, quatro para adultos e sete infantojuvenis. Recebeu o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG-1988 com o romance Véspera de lua e a Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com a novela Rio das pedras. Participou de várias coletâneas, entre as quais Mais de trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, organizada por Luiz Ruffatto.
O INDIZÍVEL SENTIDO DO AMOR | Rosângela Vieira Rocha
Editora: Patuá;
Tamanho: 200 págs.;
Lançamento: Agosto, 2017.