Outros cantos (Alfaguara, 2016), de Maria Valéria Rezende, faz pensar sobre autobiografia e autoficção. A protagonista, Maria, tem o mesmo nome da autora, e como ela, é educadora. Por conta de sua missão, é enviada para diversos cantos do planeta: Argélia, México, França, sertão nordestino. Maria Valéria, afirma, em entrevistas, que não se trata de autobiografia. A obra foi premiada, em 2017, com o Prêmio Casa de Las Américas e com o Prêmio São Paulo.
Quarenta anos depois de viver no vilarejo nordestino de Olho d´água, Maria retorna para dar uma palestra. Na viagem de volta, relembra os tempos em que atuou no povoado, à espera de material para dar aulas como alfabetizadora do Mobral.
“Quando decidi tomar o caminho de volta para minha terra e entranhar-me no sertão, escolhendo o exílio para dentro, depois de atravessar todos os lugares para onde afluíam os que precisavam e os que não precisavam fugir, sem desejar permanecer em nenhum deles, pretendi tudo saber de antemão, o já acontecido e o ainda por vir, lendo tudo o que as literaturas me ofereciam. Mergulhar mais fundo na terra e abrir os olhos sob a superfície, porém, permitia ver uma vida miúda, insuspeitável, que não chegava à tona dos livros. A cada passo um espanto, obrigando-me a perguntar tudo a todos.” (página 18)
Ao espiar pela janela do ônibus, Maria percebe que o sertão a que retorna está mudado. Luz elétrica, asfalto novo, casas com tevê e geladeira, as paredes com quadros de paisagens estrangeiras. O sertão primitivo que conheceu não existe mais. Em sua primeira vinda, aprendeu lições de como sobreviver: preparar a água para beber e água para limpeza; tingir os fios a serem tecidos como redes de dormir; preparar cuscuz para comer:
Ao mesmo tempo em que rememora, Maria dá pistas de seus exílios mundo afora, derivados de sua missão como educadora popular, atividade diversa daquela incumbida pelo governo brasileiro.
“Aprendia eu, a cada dia, muito mais e indispensáveis saberes para a teimosa vida nos mais hostis cantos do mundo do que as letras que eu viera trazer-lhes, úteis apenas em mínimas ilhas de privilégio desigualmente espalhadas no globo terrestre. // De tudo, guardei muito mais a beleza das formas.e movimentos essenciais do que o custo da aprendizagem, a dor dos músculos, dos pés, a exaustão pelo calor. Naquele mundo de escassez, a força e a beleza do trabalho humano saltavam aos olhos, eu aprendia a viver ali, retomava esperanças, ia, aos poucos, deixando descansarem em paz os meus mortos e perguntando-se quando seria capaz de saber o que fazer para transformar em nova vida as injustiças e as dores. Aprontava-me para ficar por longo tempo.” (páginas 28 e 29).
Ao mesmo tempo em que rememora, Maria dá pistas de seus exílios mundo afora, derivados de sua missão como educadora popular, atividade diversa daquela incumbida pelo governo brasileiro. Em meio a aprendizagens do chão do mundo, há descobertas, próximas a surtos epifânicos. Assistindo a um rito de festa popular, o reconhecimento de um canto gregoriano na voz dos sertanejos a espanta:
“Sem nenhuma outra exceção, as mulheres ocupavam a metade direita da capela, os homens a esquerda. Corri a meter-me sob um dos arcos do lado das mulheres, quando as vozes femininas começavam a recitar em uníssono o que custei um tanto a reconhecer como as muito antigas antífonas maiores do breviário romano para o advento. Chamadas antífonas do Ó, que eu até então só havia ouvido cantadas em latim, enlevada pelo canto gregoriano sem me esforçar para entender-lhes o significado.” (páginas 63 e 64)
Neste trecho, percebemos que o tema da memória tem um conceito ampliado. A antífona, que os sertanejos cantam de cor, foi passada de geração em geração, preservando a tradição. Maria se intriga em saber quem os teria ensinado. O espanto é o reencontro do canto erudito na voz popular, num tempo de festividades. A pequena igreja iluminada por candeeiros e velas, a alegria dos sertanejos com os folguedos de reisados constituem uma revelação.
Maria volta para a terra natal depois de vários exílios, com a missão de ajudar companheiros de luta política a fugir da repressão, da tortura e da prisão. A memória de outros cantos, outros lugares, embaralha-se a outros cantos, outras liturgias, outras poéticas. Camuflada como alfabetizadora do governo, ela se refugia para esquecer os companheiros, que como ela, mergulhavam no seio do povo, tornando-se como peixe dentro d’água, “nas margens, nas fábricas, no campo, nas palafitas, nas serras, desaparecer como o ‘fermento na massa’, manter e tornar libertadora a fé até então manipulada e distorcida para transferir a outra vida qualquer esperança, recompensa para quem aceitasse as dores deste mundo.” (página 106).
Invisível no meio do povo, uma Maria como tantas outras, seu trabalho é evidente. Nem chega a cumprir a função edificante do governo nem a missão altruísta de militante política. A sabedoria popular a elege contadora de histórias. É neste outro canto que Maria vai ouvir e se encontrar. Um canto que restaura a memória da alegria nos cantos em que os sem voz são ouvidos por estranhos. Narradores viajantes, ao que tudo indica, é que resgatam estes cantos “em mínimas ilhas de privilégio desigualmente espalhadas no globo terrestre”.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]OUTROS CANTOS | Maria Valéria Rezende
Editora: Alfaguara;
Tamanho: 152 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2016.
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