Nos percursos de leitura, é natural que tragamos conosco o repertório de uma vida e infinitas inspirações. A bagagem acumulada ao longo dos anos acaba por revelar, mesmo sem querer, múltiplas relações de intertextualidade entre o que foi lido e o que se está lendo. Ao avançar da páginas, promovemos diálogos com outros livros, filmes, canções, espetáculos e, por certo, também com experiências pessoais. Dialogamos o tempo todo com nossas memórias. Estamos, pois, irreversivelmente contaminados por aquilo que vivemos.
Se existe um discurso que, tal qual invocação às musas, sempre permeia minha mente quando dou início a uma leitura, esse é um já famoso vídeo do grande Rubem Fonseca, quando da ocasião da inauguração de uma biblioteca destinada a funcionários de uma obra (assista aqui). Em uma fala inflamada e pra lá de inspirad(or)a, o escritor, que completou 90 anos no último dia 11, é incisivo ao dizer: “a palavra é extremamente polissêmica. Cada leitor lê de uma maneira diferente. Essa é a vantagem da leitura. Nós, leitores, preenchemos as lacunas que os escritores deixam”.
Mais do que divagação barata, esse início de post vai explicar – e muito – o meu processo de travessia do livro sobre o qual eu falarei hoje. Isso porque O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman, é desses livros polissêmicos; desses que deixam o leitor desnorteado diante de tantas possibilidades de leitura; desses que, de todo inevitável, dialogam com nossos tantos eus; desses que atravessam a alma sem a menor necessidade de compreensão racional. A arte, afinal, não é isso mesmo?
Nessa linha sinuosa entre escapismo e realidade, o espectro se abre para um universo de leituras possíveis. E elas podem mesmo ser infinitas. Neil Gaiman, em seu relato de fantasia e mistério, dá corda à polissemia.
O livro, publicado no Brasil em 2013 pela Intrínseca, revela a história de um garoto-sem-nome que se refugia em um universo fantástico para enfrentar situações com as quais não possui maturidade emocional suficiente para lidar. Na voz desse menino, a obra é narrada em primeira pessoa e, portanto, reflete a fabulação típica à infância. Assim como o Totchili de Festa no Covil, o garoto de sete anos de Neil Gaiman convence, seja no discurso, seja na maneira como vai se portar com seus medos.
A história tem início quando o protagonista, já adulto e depois de muito tempo, regressa à sua cidade natal por conta de um velório. Não fica esclarecido de quem é o funeral, mas pode-se supor que seja de alguém bastante próximo, tamanho o impacto que a morte parece causar sobre ele. A partir disso, o personagem mergulha em uma espiral nebulosa de lembranças diante das paisagens que estamparam sua fase mais pueril. O devaneio invade a composição, convidando o leitor a perder-se dentre memórias e fabulações, dentre o que de fato ocorreu e aquilo que pode ser fruto de uma mente inquieta. Nessa linha sinuosa entre escapismo e realidade, o espectro se abre para um universo de leituras possíveis. E elas podem mesmo ser infinitas. O autor, em seu relato de fantasia e mistério, dá corda à polissemia. A nós, restam os nós. O enforcamento. Ou a salvação diante das profundezas do oceano de Gaiman.
Bacana é notar o quanto a literatura representa um refúgio para o garoto. Em várias passagens, ele expõe sua válvula de escape, quase como uma confissão. “Fui para outro lugar em minha cabeça, para dentro de um livro. Era pra onde eu ia sempre que a vida real ficava muito difícil ou muito inflexível”. Essas revelações estabelecem uma espécie de conversa íntima entre dois leitores, na qual, em um lado, está o garoto e, do outro, aquele que está descobrindo sua história. O passeio por referências e repertórios – que transitam nos mundos da mitologia, de Nárnia ou de Julio Verne – é a fonte maior das fabulações do menino. O mesmo ocorre com o leitor quando resolve se entregar à densidade de O Oceano no Fim do Caminho; a certa altura, fica impossível não linkar os momentos do garoto com outros livros ou filmes ou canções ou experiências.
Razão de boa parte de seus temores, a personagem Ursula Monkton é uma das principais incógnitas da trama. Travestida de governanta nos limites do real ou transmutada na criatura monstruosa dos pesadelos, a personagem está envolvida, direta ou indiretamente, em todos os traumas que o garoto sofreu. O brilhante colega Sérgio Luiz de Freitas, no artigo “O oceano no fim do caminho: a monstruosidade do mundo apresentada por Neil Gaiman” (infelizmente não-disponível online), vai dizer que os eventos traumáticos que afetam o garoto o levam a criar uma série de explicações fantásticas para, se não compreendê-los, pelo menos lidar com eles. Ursula é praticamente a personificação daquilo que pode existir de pior na vida de uma criança. E mais: talvez seja ela a essência do mal, o “demônio da perversidade” que contamina a vida adulta e contra o qual a criança trava uma luta imaginária – ou nem tão imaginária assim.
Em O Oceano no Fim do Caminho, o autor britânico acaba retomando a receita de um de seus textos mais famosos, “A Ponte do Troll”, que integra a coletânea de contos Fumaça e Espelhos. Nele, um troll, no melhor estilo Tolkien, assombra a vida de Jack, o protagonista, em diferentes fases. A cada uma – infância, adolescência ou vida adulta -, a criatura ameaça “comer sua vida”. Algo parecido ocorre com Ursula Monkton, que usa das maneiras mais impiedosas para empoderar-se da essência do garoto-sem-nome. Com esse e tantos outros diálogos que podemos estabelecer entre as duas obras, fico com a impressão de que o conto poderia, por que não, ser um excerto do livro. Aliás, fica aqui um conselho: para mergulhar no oceano, busque antes saltar da ponte. São dois textos sensacionais de Neil Gaiman, o cara do Sandman e de Coraline; um dos mais queridos nomes da literatura fantástica contemporânea.
Enfim, eis uma resenha um tanto nebulosa para um livro envolto de nebulosidade. As nuvens, porém, são também belas. Ainda mais se refletidas sobre um oceano, profundo como as memórias e as inspirações da vida.
O contra dessa capa representa uma bravata: leia mais. Fantasie mais.
O OCEANO NO FIM DO CAMINHO | Neil Gaiman
Editora: Intrínseca;
Tradução: Renata Pettengill;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Junho, 2013.