O ano era 2007. Em uma virada de sorte que às vezes acontece, um filme independente conquistou o mundo. Juno, de Jason Reitman, fez muita gente se comover com a história doce de uma adolescente que engravida de seu melhor amigo e resolve entregar o bebê para a adoção. O que provavelmente ninguém sabia na época é que a estrela do filme, uma atriz canadense de 20 anos, sofria nos bastidores por ter que se submeter à jornada de divulgação de Juno usando vestidos e outros adereços femininos. Dezesseis anos depois, esta história é lembrada em Pageboy (editora Intrínseca, 2023; tradução de Arthur Ramos), livro de memórias em que o ator Elliot Page recorda a sua vida pública e privada, incluindo a sua transição de gênero, anunciada perante a imprensa em 2020.
O que temos aqui é uma obra sincera e impactante que joga luz no processo de uma jovem pessoa trans que, aos olhos do público, parece ter conquistado tudo que um artista poderia desejar (o talentoso Page recebeu já uma indicação ao Oscar por Juno). Contudo, o que ocorria por trás das câmeras era um longo processo de sofrimento e de abusos cometidos contra uma pessoa que lidava com a disforia de gênero.
Organizado de forma não cronológica (os anos vão e voltam pelos capítulos curtos do livro), Pageboy dá a chance para que Elliot Page rememore suas origens, em Hallifax, no Canadá, e como foi a sua trajetória crescendo como uma criança que enfrentava certa confusão em sua identidade: ele não se via como menina, e todos os supostos momentos de rituais na passagem para a adolescência (a saída do time de futebol misto, por exemplo) jogavam Elliot em um poço de ansiedade. Seus pais não sabiam como lidar com isso – e, para completar, a nova esposa do pai fazia bullying constantemente com ele.
Conforme descreve, era como seu próprio corpo fosse seu inimigo e estivesse o traindo: “onze anos foi a idade em que senti uma mudança de menino para menina sem meu consentimento”, escreve. E enquanto Elliot segue vivendo e enfrentando todas essas mudanças estranhas em sua vida, sua carreira no cinema só crescia.
Um retrato cru sobre Hollywood
Embora Pageboy seja tratado o tempo todo como um manifesto trans (com Elliot Page o tempo todo frisando que, por ser uma pessoa famosa, teve muitos privilégios em sua trajetória – que, ainda assim, foi cercada de sofrimento), o livro tece ainda um retrato duro sobre como a indústria cinematográfica pode massacrar os que não se encaixam.
São vários episódios narrados pelo ator que descrevem abusos de diferentes naturezas. Em muitos momentos, Page foi estimulado e mesmo coagido a esconder a sua identidade para que não perdesse papéis, e incitado a performar em trajes ultra femininos, seja em papeis, seja em campanhas de divulgação.
Embora Pageboy seja tratado o tempo todo como um manifesto trans, o livro tece ainda um retrato duro sobre a indústria cinematográfica.
Os argumentos sempre versavam em torno das oportunidades que deixaria de ter caso se assumisse publicamente – primeiro como lésbica (o que ocorreu em 2014, em uma conferência da Campanha de Direitos Humanos, em Las Vegas) e, mais tarde, como homem trans. Os abusos também eram sexuais, e Page deixa claro o quanto uma pessoa que está com dificuldade para se reconhecer e se acolher acaba se tornando vulnerável para que seja invadido por outros.
Ainda que boa parte das histórias não nomeie os envolvidos (como no caso em que foi humilhado publicamente por um dos “atores mais famosos do mundo”, que chegou bêbado em uma festa e ameaçou o estuprar para provar que ele não era gay), algumas entregam quem são os perpetuadores das situações narradas.
Em uma delas, Page conta ter tido uma péssima experiência ao filmar com o diretor dinamarquês Niels Arden Oplev (que dirigiu a primeira versão de O Homem que não Amava as Mulheres). No remake Além da Morte (refilmagem de Linha Mortal, de 1990), o diretor teria colocado os atores em situação de risco físico sem necessidade. Além disso, Page teria participado de uma reunião com Oplev que, em tom condescendente, tentou minimizar os questionamentos do ator sobre as roupas femininas que teria que usar no filme, que não condiziam com sua personagem – uma jovem médica.
E há também histórias mais leves. Uma delas envolve o romance de Elliot Page com Kate Mara, ao mesmo tempo em que ela namorava o ator Max Minghella – que sabia do relacionamento das duas. Ou nas lembranças de muitas pessoas que cruzaram pelo seu caminho e, de forma ou de outra, desempenharam um papel importante na busca de Elliot por si mesmo dentro da comunidade LGBTQIA+.
De maneira generosa, Elliot Page dedica Pageboy a todos que vieram antes dele. Nada menos que uma homenagem justa de quem sobreviveu para contar a própria história, mas com plena consciência de que tantos outros não tiveram a mesma chance.
PAGEBOY | Elliot Page
Editora: Intrínseca;
Tradução: Arthur Ramos;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Junho, 2023.
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