Se o Brasil é o país da p*taria, por que tantos políticos levantam a bandeira do conservadorismo? Talvez esta seja uma pergunta impossível de ser respondida, e a única coisa que nos reste a fazer é rir. O romance/ peça/ crônica O Presidente Pornô (editora Companhia das Letras, 2023), da escritora mineira Bruna Kalil Othero, é um provocante (em vários sentidos) livro que explora justamente uma das veias mais ricas da nossa cultura: nosso talento para escrachar a cara dos mais poderosos.
E é exatamente isso que Bruna faz ao imaginar uma obra “homenagem” à nossa República e a todos os políticos que ocuparam o mais alto posto do país. O Presidente Pornô narra uma história de um sujeito despreparado, chamado Bráulio Garrazazuis Bestianelli, que, embora incompetente, parece estar no lugar certo na hora certa. Mesmo sem qualquer vocação para o cargo, depois de um atentado, ele é alçado a presidente do “Plazil” (qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência).
Sua jornada errante é compartilhada tendo como de fundo uma peça que é encenada para dois lascivos imperador e imperatriz que se regozijam em meio a uma trama patética que, mais do que os chocar, parece os estimular sexualmente. Os monarcas (cuja presença na história remetem à tradição da sátira política real, repercutida, por exemplo, na novela Que Rei Sou Eu?) riem, reclamam, duvidam, mas sobretudo documentam, numa espécie de jogo, que é inacreditável que haja no Plazil um ser político ainda mais ridículo que eles.
Talvez seja muito simplório associar Bráulio apenas a Bolsonaro, embora ele seja a referência mais óbvia. O “segundo-sarmento” (os incontáveis trocadilhos de duplo sentido estão entre as grandes riquezas da obra) se coloca como um defensor da pátria e da família – mas que, nas profundezas das alcovas do “Palácio do Cacete”, submete-se a todo e qualquer tipo de prática sexual, com homens e mulheres.
Ainda assim, o sarmento vai muito além de Bolsonaro, e revisita as patifarias trazidas por vários ocupantes da cadeira presidencial. Como bom conservador, ele odeia o Carnaval, quer dar uma bolsa para as mulheres feias, se considera poeta (tal qual Michel Temer e José Sarney), chama crises de marolinha (como Lula), prefere cheiro de cavalo ao do povo (como Figueiredo) e considera as constituições como virgens à espera de serem violadas (frase atribuída a Getúlio Vargas).
No país em que este tipo de palhaçada é a regra, cabe ainda à imprensa uma grande participação na forma que esta realidade é tecida. Uma camada extra de humor em O Presidente Pornô está na sátira de um texto de jornalismo político que, tantas vezes, soa próximo ao colunismo social.
O inventivo humor político pelas mãos de uma mulher
É justo dizer que a obra de Bruna Kalil Othero se insere numa tradição brasileira que, se nem sempre está em alta, encontra seu ápice em momentos de crise. Talvez as nossas melhores peças de humor tenham surgido justamente nos momentos mais pavorosos de crise política e social, sobretudo as que se associam pelo cerceamento da liberdade, tanto de dizer quanto de sentir.
O Presidente Pornô, dessa maneira, remete à inventividade de alguns dos momentos mais áureos da imprensa alternativa em tempos de ditadura militar. Mas também remete às pornochanchadas brasileiras, que surgem como uma reação libertina à repressão autoritária desta mesma época. Bruna é muito feliz ao optar pela construção de um romance fragmentado, em que vários gêneros se encontram e conspiram em prol de um mesmo fim: provocar a reflexão a partir do riso.
É justo dizer que a obra de Bruna Kalil Othero se insere numa tradição brasileira que, se nem sempre está em alta, encontra seu ápice em momentos de crise.
Mas há mais reverências que precisam ser feitas. Além de homenagear a prosa erótica da escritora Hilda Hilst, o livro de Bruna parece se encaixar dentro da tradição do grotesco enquanto gênero que produziu obras em que as classes populares assumem o poder por meio do escatológico e de uma celebração da proximidade do humano e do animal.
É tido que essa é uma forma recorrente na produção cultural brasileira – sobretudo na televisiva. Descrevem Muniz Sodré e Raquel Paiva, na obra O Império do Grotesco: “o grotesco se caracteriza pelo rebaixamento operado por uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogêneos, com referência frequente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos”. A TV, inclusive, se mostra presente enquanto linguagem cultural dos brasileiros, em cenas hilárias que ocorrem durante o debate entre os candidatos à presidência.
Todo este “caldo” caótico está presente na horda que cerca Bestianelli – que, mesmo que “honrem” a família e a tradição, sustentam uma República em que há prostitutas governamentais que passam por concursos para atender aos políticos (e a reprodução do edital de seleção cumprido por elas está entre as partes mais hilárias do livro).
Por fim, e não menos importante, destaco o fato de que este tipo de humor escrachado e devasso chegue ao mundo pelas mãos de uma mulher – o que, certamente, é ainda mais raro. A escrita sexualmente ativa de Bruna Kalil Othero a aproxima, por óbvio, de Hilda Hilst, mas também de comediantes como Tatá Werneck e Dercy Gonçalves, que, assim como ela, ousaram fazer piadas que em outros momentos (se não até hoje) só foram autorizadas aos homens.
Com sua leitura tresloucada sobre a nossa (pouco saudável) vida política, O Presidente Pornô é a obra que precisávamos para exorcizar o período nebuloso (embora engraçado) pelo qual passamos.
O Presidente Pornô | Bruna Kalil Othero
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 266 págs.;
Lançamento: Julho, 2023.
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