A gaúcha Luisa Geisler é uma espécie de prodígio literário. Em 2011, com apenas 20 anos, ela venceu o Prêmio Sesc de Literatura na categoria Melhor Livro do Ano de Autor Estreante com o romance Quiçá (Editora Alfaguara, 2024). Originalmente publicado pela Record, a obra ganha agora nova edição no selo vinculado à Companhia das Letras.
Quiçá aposta na inventividade formal para abordar o tema que se tornaria a marca dessa autora, que é a vivência juvenil com suas angústias (não por acaso, o romance rendeu depois um espaço como colunista da revista Capricho, em 2012). Luisa provaria, na sua carreira ainda em construção, que escrever sobre e para os jovens, no gênero chamado de young adult, não significa fazer obras menores.
Quiçá carrega como tema de fundo a cisão entre ser adolescente e ser adulto.
Na suposta (?) leveza da vida adolescente, Luisa sugere, escondem-se os mais pesados dramas existenciais. Em Quiçá, por exemplo, acompanhamos o sofrimento de dois jovens, os primos Clarissa, de 11 anos, e de Arthur, que acaba de completar 18. Arthur vem de uma origem complicada (de uma mãe solteira cheia de problemas) e tentou o suicídio recentemente. Por conta disso, “sobra” aos publicitários Augusto e Lorena, pais de Clarissa, a tarefa de hospedá-lo em sua casa.
É claro que o resultado é o conflito: o casal (sobretudo Lorena) teme que Augusto seja uma má influência para a filha. Meio sem rumo, ele está prestes a reprovar em tudo na faculdade, tem o hábito de enforcar aula e encher a casa de amigos, e não para de planejar novas tatuagens. O que se evidencia aos poucos, contudo, é que a certinha Clarissa, a menina modelo dos pais, sempre com boas notas na escola, está reclusa e até um pouco deprimida (embora faltem recursos a todos – exceto Arthur – para enxergar isso). Sua principal companhia é a do gato Zazzles.
Clarissa é negligenciada pelos pais, dois workaholics donos de uma agência de publicidade em São Patrício, a maior cidade do país. Quando o primo Arthur se junta à família, a suposta normalidade dessa casa que vive no automático fica prestes a desmoronar.
A trágica condição de ser jovem
Quiçá carrega como tema de fundo a cisão entre ser adolescente e ser adulto. O que se observa desde o início é a incompreensão de Augusto e Lorena (que, subentende-se, ainda são bem jovens) em se dar conta sobre o que ocorre na vida da filha, que simplesmente é encaixada como parte da rotina da família. Clarissa parece acostumada a ficar relegada a uma peça da estrutura cotidiana dos pais, que seguem tranquilos na perspectiva de que ela “tem tudo”.
O descaso parental é suprido pela quantidade de bens de consumo que são postos à filha – o que é reiterado por Luisa, de forma debochada, ao mencionar, sempre em parênteses, o tipo de TV que fica à disposição da família: “Full HD, conexão à internet, com 3D, 52 polegadas”.
Arthur, que aparece na trama como um presente de grego recebido à revelia, é como um antídoto que vai desestruturar a frágil tranquilidade desse pequeno núcleo. Ele vem de Distante, um pequeno município onde também Augusto e Lorena nasceram, e que são vistos, de maneira algo velada, como “traidores” que ousaram deixar para trás os parentes interioranos atrasados. Assim, quando ninguém sabe mais o que fazer com Arthur, cabe aos bem-sucedidos do clã de São Patrício a tarefa de acolhê-lo, talvez por culpa.
Há em Quiçá algum incômodo trazido pela parte estrutural que mistura os tempos ocorridos no presente, com a atual situação de Arthur, e o passado com a família em Distante, o que torna a alteração das vozes narrativas um pouco confusas para acompanhar. Mas a parte mais bonita é o modo que Luisa Geisler constrói a amizade inevitável (embora relativamente conturbada) entre Clarissa e Arthur – que são, de certa forma, o que sobrou um para o outro.
Nesse encontro entre dois desencaixados, cada qual à sua maneira, nasce uma relação cativante e que nos evidencia que é justamente na troca entre si, menos do que com os adultos, que os adolescentes descobrem a vida. Embora todo esse universo fosse ser melhor explorado posteriormente por Luisa Geisler no belíssimo Luzes de emergência se acenderão automaticamente, de 2014, ela já mostra em Quiçá todo o seu talento para jogar luz ao sofrimento – e ao deleite – que é crescer nesse mundo.
QUIÇÁ | Luisa Geisler
Editora: Alfaguara;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Junho, 2024 (atual edição).
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