Quem já encarou a leitura de Cemitério ou de O Iluminado sabe o que é se cagar de medo de virar a página de um livro. Ao longo dos 40 anos de carreira, Stephen King explorou de maneira brilhante as histórias de terror, criando narrativas fantásticas que flertavam com os clássicos, mas que ao mesmo tempo trouxeram um novo frescor para o gênero. Revival é uma tentativa de dialogar com grandes nomes da literatura, em especial Mary Shelley, mas nem tudo são flores pretas no mundinho insano de King.
Para a alegria dos fãs, o autor de Carrie, A Estranha produziu e ainda produz muito (são mais de 70 livros entre romances, coletâneas de contos e não-ficção), e ao escrever nesse ritmo, às vezes mais de um livro no mesmo ano, é natural que o autor derrape aqui ali. É claro que para o “leitor fiel”, esses deslizes são facilmente ignorados, já que mesmo que ele lançasse uma bula de remédio ainda assim provavelmente compraríamos uma edição. Mas o fato é que, apesar de várias qualidades, Revival, lançado ano passado pelo selo Suma de Letras com tradução de Michel Teixeira, derrapa em algo que é muito básico numa história de terror: não dá medo.
Mas vamos ao enredo: quando criança, Jamie Morton conhece o jovem pastor Charles Jacobs, um sujeito carismático, com família de propaganda de margarina, que fazia sermões contagiantes e que curtia estudar elétrica nas horas vagas. Após um “milagre” envolvendo eletricidade e também um terrível acidente de trânsito, os dois personagens tomam rumos diferentes na vida, mas os seus destinos irão se cruzar várias e várias vezes nas próximas décadas. Quando eles se reencontram pela primeira vez, Jamie virou um roqueiro decadente, viciado em heroína, e Charles se tornou uma espécie de charlatão num parque de diversões. O então ex-Pastor afirma que, com um equipamento que inventou, pode curar o vício do amigo, mas não sabe precisar exatamente quais seriam as consequências. E aí começam as tretas de verdade…
Stephen King tem o mérito de criar personagens críveis e colocá-los em situações estapafúrdias de maneira absolutamente convincentes. Aqui o autor leva um tempão desenvolvendo a personalidade de cada um deles (talvez até tempo demais), de modo que o leitor acaba criando algum tipo de vínculo e começa a temer pela vida daquelas pessoas. A própria pseudo ciência criada por Jacobs, quase um Dr. Victor, do Castelo Rá-Tim-Bum, com seus raios e trovões, funciona bem e a gente nem perde muito tempo pensando no quanto aquilo é absurdo.
Nos últimos anos, Stephen King flertou com a ficção científica e com a literatura policial. Revival é, de certa forma, um retorno ao terror.
O grande trunfo do livro é a dubiedade de Jacobs, pois não fica claro se ele é um vilão maligno, estilo cientista maluco, ou se ele apenas é um cara amargurado com a vida que descobriu uma maneira de ajudar as pessoas. Essa pegada Jekyll e Hyde é o que prende o leitor até o final.
Boa parte da crítica do livro é a respeito da religião e da fé em falsos profetas (existe algum verdadeiro?), bem como um passeio pelo mundo do álcool, das drogas e do rock n’ roll, um universo que o autor e o seu fígado conhecem muito bem.
Nos últimos anos, Stephen King flertou com a ficção científica e com a literatura policial. Revival é, de certa forma, um retorno ao terror. A figura monstruosa de Frankenstein, de Mary Shelley, ronda a mente do leitor o tempo todo, afinal, estamos lendo uma história que envolve milagres realizados através da eletricidade, portanto, é um tanto frustrante constatar que essa aproximação é mínima e bem pouco aterrorizante. É difícil não ficar decepcionado com o final do livro, principalmente porque você teve que atravessar mais de trezentas páginas para chegar até ali e acabou se deparando com algo meio xexelento, mal resolvido.
O jeito é esperar pela próxima história que surgirá na mente doentia do mestre do suspense. Tomara que não seja uma bula de remédio.
REVIVAL | Stephen King
Editora: Suma;
Tradução: Michel Teixeira;
Tamanho: 376 págs.;
Lançamento: Outubro, 2015.