A Inglaterra foi um dos grandes articuladores da escravidão nas colônias europeias. Os bancos da Rainha, por sinal, estiveram entre as entidades que mais lucraram com o tráfico negreiro para o Brasil, permitindo que britânicos fossem donos de escravos em solo tupiniquim. Quando em 1833, foi abolido o regime escravocrata nos países dominados pela coroa inglesa, houve pressão para que Portugal, Espanha e outras nações colonizadoras aderissem a essa nova configuração cujo movimento nada tem de espontâneo ou humanístico, mas reflete a industrialização da Inglaterra e a necessidade de escoamento da produção. É de se pensar no potencial de comércio quando se lembra que, somente no Brasil, quase 5 milhões de pessoas estavam aprisionadas em senzalas.
Não espanta, por tanto, a naturalização das práticas escravistas ou, nas palavras de Hannah Arendt (1906 – 1975), na banalização do mal. E poucos se lembram que um dos mais importantes personagens da literatura mundial, Robinson Crusoé, naufragou – depois de inúmeras desventuras – justamente quando estava envolvido no envio de negros para o Brasil. Publicado em 1719, Robinson Crusoé (Penguin Classics Companhia das Letras, 404 págs.) é um retrato conturbado das relações entre o Novo e o Velho Mundo.
Quando Daniel Defoe (1660 – 1731) – um fidalgo que flutuava entre as graças e as desgraças políticas da sua época – deu vida a Crusoé, estava criando um espelhamento da natureza humana. Se por um lado o herói era um homem engenhoso e capaz de dominar as técnicas de sobrevivência em um ambiente hostil, no sentido contrário, era também um sujeito aterrorizado pela culpa cristã e pela resignação à Providência Divina – que atua no romance como um personagem silencioso, quase um deus ex-machina.
Crusoé, deslocado no tempo – só resta fazer algumas marcações em tábuas – e no espaço – a ilha se revela como um enigma –, oscila em sua própria natureza e se transubstancia ao entender, sem aceitar, a sua condição. Para John Richetti, professor e pesquisador da obra de Defoe, a mudança de Crusoé representa o pensar senhorial europeu:
“A transformação de Crusoé, de sobrevivente aterrorizando e confuso a senhor colonial todo-poderoso e implacável governante supremo da ilha, marca Robinson Crusoé como um dos mitos modernos cruciais da cultura inglesa, e mesmo europeia.”[1]
Em resumo, aquele era o zeitgeist, um elemento impossível de escapar.
Exílio
Crusoé começa a sua jornada no mar como um jovem rebelde, que desvia dos conselhos do pai e embarca em um navio capitaneado pelo pai de um amigo. Nesse episódio, o capitão enxerga Crusoé sob uma maldição, um mau agouro que lhe é de nascença. Parece irônico, mas Crusoé, em uma pronúncia britânica arrastada, pode soar quase como cursed, amaldiçoado em inglês. E talvez por essa condição inata, o herói – cuja descrença lhe preenche o espírito antes de chegar à ilha – se converta em um cristão fervoroso, de aspectos à beira do messianismo.
Defoe não limita seu personagem, ao contrário, cria um homem de complexidade quixotesca, ainda que sempre paranoico. Ao se deparar com a solidão, Crusoé não compreende de imediato a si mesmo. E o autor vai enxertando na narrativa pequenos momentos de consciência. É provável que mais o significativo seja quando Robinson Crusoé tem jurisdição sobre a natureza, sobretudo a descoberta dos ciclos de plantio e colheita. Ali está a sua salvação – ou sobrevivência – e consciente desse despertar, e apto pelos meios de produção naturais, Crusoé passa a se sentir mais à vontade na condição de exilado. É um encontro de naturezas.
Defoe não limita seu personagem, ao contrário, cria um homem de complexidade quixotesca, ainda que sempre paranoico.
Essa relação de entendimento, por assim dizer, entre o personagem de Defoe e o mundo vegetal se dá no eixo de um acordo tácito, um pacto de não agressão. Essa é uma concepção que parece dialogar com a ideia de autonomia das plantas concebida pelo biológico italiano Stefano Mancuso em A revolução das plantas. Enquanto os animais necessitam do outro para as funções mais básicas – como comer e reprodução –, as plantas bastam si mesmas. “Não somos melhores que as plantas, como espécie somos estúpidos”, disse Mancuso em entrevista.
Há, portanto, uma espécie de aquietação que, claro, em alguma medida, advém da devoção religiosa como explicação e consolo. Crusoé vê a si mesmo como um filho pródigo que não retorno à casa do pai, mas que volta do reino dos mortos ao sobreviver à tragédia. Jesus ressuscitou ao terceiro dia, enquanto Robinson regressa à Inglaterra quase três décadas após o acidente.
“Saí andando pela praia com as mãos para cima, e todo o meu corpo como que arrebatado ao contemplar aquela minha salvação, fazendo mil gestos e movimentos que não sei descrever, pensando em todos os meus camaradas que tinha se afogado, e que nenhuma outro alma devia ter sido salva além de mim; pois, quanto a eles, nunca mais os vi, ou qualquer sinal deles, exceto três dos seus chapéus, um gorro e dois sapatos desemparelhados.”
Nesse sentido, Defoe compõe o náufrago como uma condição de alguém em perpétuo alijamento, isto é, o sujeito em exílio, que como afirmou Joseph Brodsky (1940 – 1996), se dá na condição de não se sentir em casa. Ainda assim, poucos souberam ressignificar Crusoé como Thomas Bernhard (1931 – 1989) em Náufrago. Na obra, o escritor austríaco transforma seus personagens – três estudantes de piano, um deles Glenn Gould (1932 – 1982) – em uma experiência extrema, entre a aniquilação do self, o autoexílio e a desconstrução da realidade a partir da ilusão. É um homem que desprovido de tudo, acalma-se nessa ausência, porque entende que é o vazio que o preenche.
São esses os mesmos movimentos que encontramos em Robinson Crusoé. Quando vai em direção conversação religiosa (aniquilação do self), em que Crusoé abdica de sua própria percepção de mundo (desconstrução da realidade) para aceitar aquilo que entende como Providência (autoexílio) executa de uma só vez os três movimentos dessa suíte. Em uma análise mais detalhada, outros elementos alimenta esses mesmos três fatores em diversas passagens.
Humanização
Defoe baseou parte da história de Crusoé nos incidentes de Alexander Selkirk (1676 – 1721), marinheiro escocês que passou quatros anos isolado após naufragar. A ilha que Selkirk habitou, e que naquela época se chamava Mais a Tierra, passou a ser conhecida como Ilha Robinson Cruosé. Ironicamente, o escritor norte-americano Jonathan Franzen, durante uma visita ao lugar em um festival literário, perdeu seus óculos depois que um lunático os arrancou do rosto e pediu um resgate em libras esterlinas.
A ideia da ilha deserta – como conceito de alijamento e não-lugar – é um espaço fascinante: o local perfeito para que o homem seja devolvido à sua natureza. Richetti, em uma percepção bastante arguta, relembra que, à medida em que Robinson Crusoé se encrustou na cultura popular, parece que o herói estava “construindo o seu forte” como quem está “brincando de casinha”. Essa é a representação romântica de uma representação romântica, considerando a história de Selkirk.
Coetzee, em Foe – uma reinvenção da história clássica que coloca Susan Barton, uma náufraga misteriosa como companheira de Crusoé em seus últimos anos de isolement – tenta desfazer esse equívoco ao explorar a fantasia que o próprio Defoe perpetrou. Desse mundo idílico de Crusoé, que Barton chama de Cruso, resta só a ilusão polida por um homem habilidoso que tanta transformar a fábula da náufraga – inclusive, retirando-a do texto final – em uma aventura cativante.
“Para leitores versados em narrativas de viagens, as palavras ilha deserta podem evocar um lugar de areia macia e árvores frondosas onde correm regatos para saciar a sede do náufrago e onde frutas maduras caem das árvores em suas mãos e onde nada mais é exigido dele senão cochilar dias interiores até surgir um navio que o leve para casa. Mas a ilha que alcancei depois do naufrágio é bem diferente: um grande morro rochoso com topo achatado, que subia íngreme do mar em todos os lados, menos um, pontilhado de arbustos pardos que nunca floresciam.”
E segue-se uma litania de desgraças e desventuras que Barton testemunha ao lado de Crusoé, preguiçoso e indolente, e de Sexta-feira, um servo de língua cortada.
Ainda que Foe seja uma reconstrução, cujos desvio são a força do texto, Coetzee estabelece uma espécie de representação de Crusoé como um bom-selvagem. Esse é o oposto do que Defoe propõe: seu personagem aceita o destino, mas não se distancia da sua natureza humana e faz de tudo para preservá-la – assim se esforça para levar a Sexta-feira essa mesma essência humanizada europeia. Essa noção de grandiloquência cultural explica o porquê história e personagem estão, tão contundentemente, arraigados no imaginário popular, como se fossem uma espécie de condição humana.
Robinson Crusoé é uma das obras fundantes da literatura de aventura, um dos romances mais interessantes e inteligentes já escritos, mas – como uma peça do seu tempo – é também um retrato consistente do pensamento colonizador e desbravador.
É o mesmo peso que recai sobre Coração nas trevas, o trabalho mais importante de Joseph Conrad (1857 – 1924), ou sobre a obra de Monteiro Lobato (1882 – 1948), cujas ideias supremacistas e eugenistas foram “redescobertas” há uma década, após publicação de cartas pessoais do escritor pela revista Bravo! e trouxeram à tona o debate a respeito da validade de sua obra. Nesse sentido, julgar Defoe por aquilo que o livro é, é cometer um erro histórico, e não o analisar criticamente sob esse mesmo espírito também.
[1] RICHETTI, John. Introdução. In DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
ROBINSON CRUSOÉ | Daniel Defoe
Editora: Penguin;
Tradução: Sergio Flaksman;
Tamanho: 408 págs.;
Lançamento: Maio, 2012 (atual edição).