“Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação […] deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.”
David Foster Wallace
Adjetivos são foda, eles podem se reproduzir feito coelhos ao longo de um texto de modo contaminar os argumentos até que eles fiquem cheios daquela artificialidade craquenta e enjoada que faz o leitor revirar os olhos. “Adjetivos, aquelas putas” dizia o argentino Julio Cortázar, que provavelmente tinha problemas com putas. O caso é que uma obra tão poderosa como Ruído Branco pode levar o resenhista despreparado a patinar nos elogios e se perder em superlativos. A propósito, eu sou exatamente esse resenhista, ok? Mas ainda não revire os olhos, se tudo dar certo você terminará de ler esse texto, vestirá uma roupa de Indiana Jones e sairá revirando os sebos mais empoeirados da sua cidade em busca desse tesouro literário que infelizmente não é dos mais fáceis de se achar por aí.
Vamos lá, do que que fala esse livro? De uma porrada de coisas, mas pra colocar numa frase mais bonita, basicamente (quem implica com advérbio é o Lobo Antunes, se não me engano) ele traça um panorama angustiante da nossa relação com o consumo. É como se aquela luz forte do corredor de congelados iluminasse a nossa essência. Pode soar meio engraçado, mas na verdade isso é triste pra caralho, como o próprio livro vem a demonstrar.
Ruído Branco, lançado aqui no Brasil pela Companhia das Letras com tradução Paulo Henriques Britto, venceu o American Book Award em 1985 e essa carteirada já está estampada na capa do livro, mas você nem precisa dela para se convencer a ler, vai por mim. Don DeLillo nos conta a história de Jack Gladney um professor do meio-oeste americano que conquistou certa notoriedade na universidade em que trabalha ao criar uma área de estudos que até então não existia: o departamento de hitleroloria que, como o próprio nome já diz, é especializado em estudar a vida do famoso fascista de bigode. O detalhe é que o bocó não fala uma mísera palavra em alemão.
Ruído Branco venceu o American Book Award em 1985 e essa carteirada já está estampada na capa do livro, mas você nem precisa dela para se convencer a ler, vai por mim.
Jack é casado com Babette e juntos eles cuidam de uma penca de filhos oriundos dos casamentos anteriores. Tirando o fato de que o casal sente um medo excruciante de que o parceiro morra antes, a vida deles segue relativamente bem entre as delícias de sacar dinheiro no caixa eletrônico e torrá-lo no centro comercial mais próximo, até que ocorre um desastre com um trem carregado de produtos químicos e uma nuvem tóxica começa a se aproximar das residências, fazendo com que as pessoas tenham que abandonar as suas casas.
Ao falar sobre o meio acadêmico, Don DeLillo não pouca o escárnio:
“- Eu entendo a música, o cinema, entendo até o que se pode aprender com as revistas em quadrinhos. Mas há professores titulares aqui que só leem caixas de cereais.
– É a única vanguarda que temos”.
Trechos assim provocam aquele riso nervoso de “haha olha que absurdo” seguido de “se bem que eu conheço uns professores que…”.
A criação de uma droga que supostamente eliminaria o medo da morte acaba por gerar alguns conflitos familiares, afinal a consciência de nossa finitude não é parte essencial daquilo que nos torna humanos? O que o livro debate é que a forma alienada como conduzimos os nossos dias talvez nos aproxime da morte mais do que imaginamos: “Talvez, quando a gente morrer, a primeira coisa que a gente diga seja: ‘Conheço essa sensação. Já estive aqui antes’”.
O fascínio dos personagens pela tragédia é extremamente perturbador (porque nos identificamos?). Diversas vezes o protagonista tenta lutar consigo mesmo para não torcer para que o número de mortos não seja maior, que a história não seja ainda mais escabrosa, a notícia ainda mais horrível etc. O autor relaciona a nossa insensibilidade diante dessa podridão televisionada, como uma entrevista escrota com alguém que perdeu tudo num enchente, ao volume de informações a que temos acesso:
“- Por que motivo, Alfonse, pessoas direitas, bem-intencionadas e responsáveis ficam fascinadas pelas catástrofes mostradas pela televisão?
[…]
– Porque estamos sofrendo de sufocamento cerebral. Precisamos de uma catástrofe de vez em quando para quebrar o bombardeio incessante de informações. […] Queremos catástrofes, precisamos delas, dependemos delas, desde que não aconteçam onde estamos”.
Mas é a nossa relação com o consumo desenfreado que rende os melhores momentos da obra. O curioso é que o autor não direciona um olhar decepcionado ou distante para a suas crias, há certa compaixão pelos personagens, como se ele já não esperasse grande coisa da humanidade. Eles são o que são. O que somos:
“Tive a sensação de que eu e Babette, no meio daquele volume de variedade de compras, da abundância que aquelas sacolas cheias conotavam, peso, tamanho e número, os rótulos tão conhecidos, as letras de cores vivas, os tamanhos imensos das embalagens, os pacotes com descontos proclamados em tinta fosforescente, com a sensação de renovação que sentíamos, de bem-estar, segurança e contentamento, induzida por esses produtos sendo levados para um lar confortável em nossas almas – tive a sensação de que havíamos atingido uma plenitude existencial que desconhecem aqueles que precisam de menos, esperam menos, que organizam a vida em torno de solitárias caminhadas ao entardecer”.
Percebe-se que Don DeLillo talvez tenha sido um dos autores que melhor compreendeu a contemporaneidade sob esse aspecto. É difícil ler um livro tão grandioso como esse e não pensar no quando ele deve ter influenciado nomes como David Foster Wallace, Bret Easton Ellis, Chuck Palahniuk e George Saunders, outros caras que, cada qual ao seu modo, também tentaram captar esse ruído moderno, essa solidão que faz eco em supermercados lotados.
O autor consegue resumir o cidadão médio americano, sem necessariamente reduzi-lo a esteriótipo, num trecho espantosamente simples e profundo: uma família apertada dentro de um carro comendo frango frito e falando sobre o universo.
Ruído Branco é um livro genial. Sei bem que essa palavra perdeu seu peso, já que anda meio banalizada, mas acredite em mim, essa é a melhor definição do que Don DeLillo conseguiu aqui: o livro é genial.
Se você folheá-lo aleatoriamente, provavelmente encontrará algo incrível como isso:
“O poder dos mortos reside na crença de que eles no veem o tempo todo. Os mortos têm uma presença. Haverá um nível de energia composto exclusivamente de mortos? É claro que, por outro lado, eles estão debaixo da terra, adormecidos, apodrecendo. Talvez sejamos o que eles sonham”.
Os trechos finais, em que há alguns diálogos bem importantes entre o protagonista e outro professor, estão entre as melhores coisas que eu já li na literatura contemporânea. Pouquíssimos autores conseguiram alcançar uma narrativa tão poderosa como a que se vê ali.
Enfim, não sei se fui claro o suficiente, mas o que eu quero dizer é: faça um bem a você mesmo e leia esse livro o quanto antes.
RUÍDO BRANCO | Don DeLillo
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Paulo Henriques Britto;
Tamanho: 320 págs.;
Lançamento: Janeiro, 1987.