Parece que não faz muito tempo que começamos a constatar algo que – literalmente – está presente todos os dias em nossas casas: o fato de que a arquitetura fala. E ela diz coisas importantes sobre como nós, brasileiros e brasileiras, enxergamos a vida e o mundo. Estas histórias surgem, inclusive, a partir de um dos elementos à beira da extinção nos apartamentos mais modernos, que é aquele espaço que se designou chamar de “quarto da empregada”.
Solitária, romance da jornalista e escritora Eliana Alves Cruz, parte do contexto arquitetônico para tentar entender o que ele simboliza em termos de desigualdade social. A história contada no livro é delimitada em três “personagens” centrais: a empregada doméstica Eunice, sua filha Mabel e o quartinho que elas ocupam na cobertura do prédio de luxo Golden Gate.
O foco deste romance são os personagens tidos como invisíveis pelas famílias abastadas, que contratam estas pessoas e que, em boa parte das vezes, acreditam que estão fazendo um favor a quem não tem outra oportunidade. Quem fala em Solitária são os que estão do lado de cá: a empregada, a babá adolescente, a filha da doméstica que não pode ser criança, o zelador conformado e seus filhos que veem todo o cenário por outro ângulo.
O foco deste romance são os personagens tidos como invisíveis por essas famílias abastadas, que contratam estas pessoas e que, em boa parte das vezes, acreditam que estão fazendo um favor a quem não tem outra oportunidade.
O tema da herança escravocrata que transparece na contratação do trabalho doméstico tem sido tratado com frequência em obras recentes. Aparece, por exemplo, em Que Horas Ela Volta?, filme de Anna Muylaert, e em Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso. A riqueza de Solitária, no entanto, está no foco colocado na questão racial, que não é tão presente em seus antecessores.
Tal como a relação entre Val e Jéssica no filme de Muylaert, aqui também estamos diante de uma mãe que trabalhou desde muito cedo e de uma filha que se rebela, de modos relativamente sutis, contra uma situação que não é natural – embora pareça para quase todos em volta que sim.
Como um grilo falante mais petulante, é a filha Mabel que vai se encarregar de mostrar para a mãe que, mesmo que ela tenha um salário bom na casa de dona Lúcia, sua condição é precarizada. Em certo momento bastante contundente, a moça se pergunta: “uma jaula deixa de ser a vilã da liberdade só porque é pintada de dourado?”
Inicialmente, Eunice não se dá conta, mas seu serviço não é apenas o trabalho doméstico com a casa. Ela precisa fazer parte de um sistema que assegura que a filha da patroa, Camilinha, seja sempre criança, enquanto a sua própria filha não tem opção a não ser amadurecer à força.
Estrutura inventiva para contar uma história dura
Dividido em três partes, Solitária tem uma estrutura inventiva, propondo que o foco narrativo mude para três ângulos: a filha, Mabel, a mãe, Eunice e, por fim, a visão do quarto – o da empregada, mas também o do porteiro e o do hospital em que os pacientes enfrentam a pandemia de COVID-19.
Isto traz a possibilidade que Eliana Alves Cruz trabalhe, de maneira original, os modos pelas quais a história vai ser observada. Mabel, a filha que “ousa” estudar, mesmo que todo o contexto sugira que isso será impossível, tem o olhar mais consciente à realidade. Sua narrativa, portanto, é de denúncia: “além dos espaços apertados que ocupávamos, o silêncio era um companheiro. Era preciso estar presente sem estar. Uma boa serviçal é silenciosa, e a criança que é filha dessa mulher também deve ser”.
No entanto, a ótica de Eunice foge do clichê da mulher ingênua ou pouco esclarecida, que seria o caminho mais óbvio para construir a personagem. A realidade é complexa: ainda que saiba (ou ao menos reconheça isso aos poucos) de que é explorada, Eunice não consegue evitar de ter afeto pela filha da patroa, mesmo que ela tenha crescido mimada.
Acessível na estrutura (é um daqueles livros de leitura fácil, em que se avança pelas páginas de forma fluida e não se consegue largar antes do fim), Solitária pode até enganar pela ideia de simplicidade. Esta acessibilidade, contudo, é estratégica: faz com que a sua mensagem dura seja carregada até os lugares onde ela deve estar, como as escolas. Uma obra paradoxalmente leve e pesada que merece ser lida por todo mundo.
SOLITÁRIA | Eliana Alves Cruz
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 168 págs.;
Lançamento: Abril, 2022.
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