O hibridismo ou o uso de diferentes gêneros literários pode ser um recurso importante e eficiente para ampliar os sentidos de uma obra. Uma vez que a linguagem cria as condições para o surgimento de ritmos, imagens e sentidos, temos a abertura para aquilo que Roland Barthes entendia como a função a qual o escritor deveria empenhar-se, isto é, a tarefa de “multiplicar as significações sem as preencher nem fechar”.
É o que o parece, por exemplo, com Sul (Editora 34, 2016) da escritora gaúcha Veronica Stigger. Composto por três textos de diferentes gêneros (um conto, “2035”; uma peça teatral, “Mancha”; e um poema narrativo, “O coração dos homens”), o livro parece ser atado, em suas diferentes partes, pelo sangue. Presente desde o trecho que antecede o conto (a imagem do sangue que jorra do nariz e, espalhado na parede, cria os contornos do mapa do Sul), passando pela “Mancha” de sangue no tapete do apartamento e, finalmente, na menstruação da narradora em “O coração dos homens”, a imagem é simbólica e recorrente.
No conto “2035”, que exibe um cenário de ruas abandonadas e sujeira acumulada nas calçadas, notam-se sinais de uma sociedade decadente. O caráter autoritário e violento dos dois personagens que representam oficiais do governo é significativo para o desfecho da trama. Essa configuração permite refletir a violência como dispositivo do Estado de exceção, que surge na ficção de modo ritualizado, sem deixar, no entanto, de suscitar ecos de um passado recente do Brasil. A arbitrariedade com que agem os oficiais do governo nas primeiras ações do conto, remete à passagem inicial de O Processo. Como no romance do escritor tcheco, o leitor não conhece os motivos que levam os oficiais a retirarem Constância do prédio onde vive com seus pais.
A ação ocorre no dia em que Constância completa dez anos de idade. Tudo o que sabemos é que ela deve ser levada pelos oficiais a tempo de participar das “grandes comemorações”. Acompanhados de um civil e munidos com facões e um pé de cabra, os oficiais arrombam os portões do prédio até chegarem ao apartamento onde a menina vive com os pais. Apesar da negativa destes em entregar a filha, Constância termina sendo levada pelos oficiais e pelo civil. Chegando ao local designado para as tais comemorações, a menina se encanta com o parque repleto de brinquedos, como se essas distrações ocultassem o verdadeiro sentido de sua presença no local.
Na passagem em que Constância utiliza um chicote contra o civil, é possível identificar semelhanças com Pozzo e Lucky, personagens de Beckett em Esperando Godot.
A peça “Mancha” se passa em um apartamento mobiliado apenas com um sofá, duas poltronas distribuídas nas laterais do sofá e, no centro, um pelego “com uma enorme mancha vermelha no canto esquerdo”. Carol 1 e Carol 2 são as personagens que travam um diálogo com ares de teatro do absurdo em torno de manchas de sangue espalhadas pelo apartamento.
Já o longo poema narrativo “O coração dos homens” é sustentado pelo uso da memória da narradora, que relata episódios de sua infância como a encenação de Branca de Neve e os setes anões ou a recordação da primeira menstruação. Uma das surpresas interessantes de Sul são as páginas seguintes a “O coração dos homens”. Sob o título de “A verdade sob o coração dos homens”, as páginas são coladas umas às outras e exigem que o leitor rasgue-as para lê-las. Escrito também em tercetos, “A verdade sob o coração dos homens” é a negação e desconstrução dos episódios narrados em “O coração dos homens”, como se a intenção da autora fosse instaurar mais ambiguidade à obra, ampliando as vozes e possibilidades de leitura desse livro estimulante.
SUL l Verônica Stigger
Editora: 34;
Tamanho: 96 páginas;
Lançamento: Outubro, 2016.