Você está numa livraria e vê ali na prateleira de destaques um tijolão com o título Toda Luz Que Não Podemos Ver. Depois de olhar para os lados e conferir se ninguém está vendo, já que essa prateleira às vezes é meio constrangedora, você pega o dito cujo e dá uma olhada na parte de trás, onde lê a frase “Mais de 1 milhão de exemplares vendidos”. A constatação é rápida e fácil (e preconceituosa): trata-se de um romance espírita ou de uma obra de autoajuda, ou quem sabe as duas coisas ao mesmo tempo. O jeito é devolver rapidamente o livro na prateleira, pra não ser flagrado com uma bobagem dessas nas mãos, e fingir que está procurando uma nova edição de um clássico do Dostoiévski.
Mas e se eu lhe disser que se você superar o preconceito contra a aparência e o título do livro encontrará uma grandiosa obra sobre a Segunda Guerra Mundial, um romance que está a quilômetros de distância de algo que poderia ter sido escrito pelo pessoal de branco que dita as coisas pra Zíbia Gasparetto?
O escritor americano Anthony Doerr, finalista do National Book Awards e vencedor do Prêmio Pulitzer, conta aqui uma história lazarenta de triste sobre duas crianças em lados opostos durante o grande conflito. De um lado temos Marie-Laure, uma garotinha cega (viu como é feio prejulgar o título do livro?) que mora na França com seu pai. Do outro, na Alemanha nazista, temos Werner, um órfão muito inteligente que é apaixonado por rádios e seus complexos sistemas de comunicação.
O livro, lançado este ano pela editora Intrínseca, acompanha um longo período na vida desses personagens, mas se concentra mais nos anos que envolvem a ascensão e queda de Hitler. Tendo como elo narrativo a história de uma pedra preciosa, que segundo uma lenda poderia trazer imortalidade e ao mesmo tempo desgraça ao seu dono, vamos acompanhando em capítulos alternados os rumos trágicos aos quais essas duas crianças são direcionadas.
O livro, lançado este ano pela editora Intrínseca, acompanha um longo período na vida desses personagens, mas se concentra mais nos anos que envolvem a ascensão e queda de Hitler.
Com a França sendo invadida pelos nazistas, Marie-Laure e o pai precisam se refugiar na casa de parentes, na cidade de Saint-Malo, palco do clímax apoteótico que a cada capítulo o autor vai nos antecipando. No novo local, o pai cria uma maquete perfeita das ruas ao redor, para que a menina aprenda a se movimentar sem precisar de ajuda. Há quem possa enxergar isso como sendo algo muito piegas, mas encaro como um ato de grande beleza não só por ser uma comovente demonstração de cuidado, de preocupação, mas também como a representação do amor imenso de um pai que tenta recriar um mundo melhor, um mundo que não seja tão absurdo, onde a filha possa viver. Já Werner, cooptado pela juventude hitlerista, vê seu destino sendo traçado em linhas desiguais, em que ele percebe a oportunidade de trabalhar com aquilo que ama, mas ao mesmo tempo se vê diante da barbárie, representada principalmente pela violência a que seu amigo Frederick é submetido.
Marie-Laure se movimenta com base na contagem de passos e bueiros nas ruas, Werner se orienta através dos cálculos envolvendo as ondas de rádio. Ambos buscam uma saída numa terra devastada feita só de escuridão, que já não possui um lugar seguro e onde não há nem mesmo uma direção para se seguir, já que para todos os lados só há dor e sofrimento.
Anthony Doerr conseguiu dois feitos que me parecem impressionantes. Primeiro: contou uma história realmente diferente sobre a Segunda Guerra Mundial, interessante e comovente sem nem chegar perto de repetir lugares-comuns maniqueístas tão típicos em narrativas bélicas. Segundo: ele agarra o leitor pelo colarinho já nos primeiros capítulos e não nos deixar largar as mais de quinhentas páginas até o fim. Não há momento algum em que a história fique meio chata ou pareça que estamos sendo enrolados, que nada, Doerr alterna capítulos curtos e inunda as páginas de acontecimentos angustiantes, comoventes e de muita ternura, que fazem o leitor não querer desgrudar do livro. Fora isso tudo, a obra possui uma linguagem límpida que privilegia a simplicidade e a história que está sendo contada, mas ao mesmo tempo nos presenteia com trechos delicados, de puro lirismo. Em alguns momentos o autor consegue aproximar a linguagem científica e a linguagem poética e isso é um troço de ficar embasbacado, pois nunca pensei que ficaria emocionado lendo algo sobre física, por exemplo.
Sou do tipo que também julga o livro pela capa (me deixem) e realmente não havia nem passado pela minha cabeça que esse romance poderia ser tão incrível. Como é bom estar enganado num caso como esse.
TODA LUZ QUE NÃO PODEMOS VER | Anthony Doerr
Editora: Intrínseca;
Tradução: Maria Carmelita Dias;
Tamanho: 528 págs.;
Lançamento: Abril, 2015.