Talvez seja justo dizer que vivemos uma onda de obras que falam das diversas violências sofridas pelas mulheres. Obviamente, o tema não é novo, mas as diversas nuances do abuso adquiriram mais visibilidade por conta dos debates levantados pelo menos nesta última década. Dentro deste contexto, é difícil pensar em obras que tragam alguma novidade sobre o assunto. Mas isso é surpreendentemente atingido em um livro de estreia. Virgínia Mordida (editora Companhia das Letras, 2024), primeiro romance da escritora capixaba Jeovanna Vieira, foi, em sua primeira versão, finalista do Prêmio Kindle de Literatura. A obra consegue oxigenar a temática dos relacionamentos tóxicos a partir dos aspectos da raça e da autonomia feminina.
A publicação nos apresenta Virgínia, uma advogada bem sucedida que passeia por uma vida sonhada por muitas: filha de uma família amorosa e conectada com a sua ancestralidade negra, ela se realizou profissionalmente e aproveita muito a juventude ao lado de suas amigas, igualmente bem resolvidas, Dóris e Penélope.
Todo esse caminho percorrido, no entanto, não impede que Virgínia se apaixone pelo sedutor Henrí, um argentino de história triste conhecido em seu círculo de amizades por levar as mulheres com quem se relaciona ao seu limite. Inteligente e esclarecida, Virgínia se vê “mordida” pela paixão por um homem que está totalmente entregue a ela, a ponto de desejar um filho do casal.
Mas Virgínia Mordida escancara o que deveria ser óbvio: todas nós, independente de fatores como classe social e grau de instrução, estamos suscetíveis aos apelos de um vampiro emocional – que, como Jeovanna Vieira oportunamente deixa claro, também é vítima de circunstâncias dramáticas. Mesmo as “terapeutizadas”, que parecem assentadas em seu centro, podem se unir às sombras de quem não está bem.
A autópsia de um relacionamento falido

Com narrativa segura, que envolve o leitor e o faz querer chegar até o fim, Jeovanna Vieira tem como trunfo em sua obra a complexidade do olhar em 360 graus para os relacionamentos tóxicos, que nos são apresentados por meio do que ocorre com Vírgínia. Ela foge de qualquer estereótipo de uma mulher que cairia nas situações provocadas por Henrí, um sedutor hipster de vida desregrada e instável. Mesmo assim, seu tipo continua encantando muitas moças que escolhem não ver as roubadas por trás de um galã argentino.
Um dos aspectos mais impressionantes do texto de Jeovanna Vieira é justamente o fato de ter constituído uma personagem desafiadora ao leitor – e, por isso mesmo, muito real.
A tudo isso se acrescenta o aspecto crucial da raça: Virgínia descende de uma linha de mulheres autônomas e que legaram umas às outras o orgulho de sua história, bem como a noção clara que precisam permanecer em pé, mesmo quando estão ao lado de homens fracos. Todas – seja sua mãe ou suas amigas – que estão à sua volta veem o que ocorre com a advogada.
Um dos aspectos mais impressionantes do texto de Jeovanna Vieira é justamente o fato de ela ter constituído uma personagem desafiadora ao leitor – e, por isso mesmo, muito real. Virgínia não é cega: sabe que está ao lado de um homem narcisista e manipulador, e passa todo o tempo se esforçando para limar as arestas de sua personalidade.
Esta percepção nos é posta pelo romance de maneiras muito contundentes, em trechos como esse: “levar aquele homem para casa é como recolher o cocô do cachorro na calçada. Muito mais um ato cívico para que as outras pessoas não se sujem do que vontade de ir com ele a qualquer lugar”.
Ainda assim, por razões que requisitam a participação ativa de quem lê o romance, Vírgínia não consegue não desejar este homem cheio de problemas. Profundamente humana, a personagem encontra consonância em incontáveis mulheres que não se veem representadas em outras histórias de abuso. Virgínia Mordida é um baita livro.
VIRGÍNIA MORDIDA | Jeovanna Vieira
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Abril, 2024.
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