A autoficção – que não é nenhuma novidade, surgiu nos Estados Unidos nos anos 1970 e apareceu com força por aqui no século XXI – tem transformado a literatura em um fenômeno centrípeto, focado em um olhar único e restrito – já que o autor, nem sempre, extrapola os limites do eu. Obviamente, isso também pode acontecer na literatura dita completamente ficcional. A autoficção é uma estratégia interessante, que pode conter uma catarse – como fez muito bem Cristovão Tezza em O Filho Eterno – ou pode não passar de uma muleta literária para contar a sua própria história.
O Litercultura, festival literário que acontece em Curitiba até esta sexta-feira (10), traz um interessante contraponto à autoficção (lugar de fala): o lugar de escuta. O debate – que trouxe Veronica Stigger, o próprio Tezza, Ana Maria Gonçalves, João Silvério Trevisan e Noemi Jaffe – coloca a literatura na perspectiva do outro. Se por um lado é um sujeito único e parcial – e todos somos assim –, como quebrar os limites que nos impelem ao nosso próprio umbigo? O primeiro passo é justamente saber escutar.
Veronica Stigger, autora de livros como Os Anões e Sul, realizou um projeto artístico cujo objetivo era capturar (sim, o verbo é esse mesmo) frases aleatórias ditas por gente comum na rua. Da empreitada surgem pérolas, mas também a sensação de que o sujeito não percebe que uma sociedade só pode ser formada por vários. Somos todos legião.
Todos no escuro
É inegável que os norte-americanos foram profundamente afetados pelo 11 de setembro. É impossível que algo daquela magnitude passasse incólume à vida dos sobreviventes. Cinema, fotografia, artes visuais e, claro, a literatura foram amplamente influenciados pelo atentado. Não poderia ser diferente. Quando vemos essa literatura – amplamente afetada pela queda das Torres Gêmeas –, a pergunta que fica é: ao tematizar o incidente, o autor está centrado em si – já que trata de algo que mudou o modo de seu país ver o mundo, em especial o islâmico – ou está dando voz às vítimas e suas famílias?
Se por um lado é um sujeito único e parcial – e todos somos assim –, como quebrar os limites que nos impelem ao nosso próprio umbigo? O primeiro passo é justamente saber escutar.
A situação é complexa. Homem no Escuro, de Paul Auster, apresenta uma perspectiva intimista de seu protagonista – um crítico literário insone e que nega o atentado. Por meio da ironia – negar o inegável –, Auster se afasta de abordagem comum que o tema recebe e cria um texto forte sobre identidade – própria e nacional – e pertencimento. Homem em Queda, de Don DeLillo, se debruça sobre os ecos de alguém que sobreviveu ao World Trade Center. Em ambos os casos, os escritores percorrem os efeitos psicológicos, deixando as análises políticas para os jornais e teorias da conspiração. Essa é a perspectiva do outro.
Ana Maria Gonçalves, que escreveu Um Defeito de Cor, afirma que o lugar de escuta é dedicado a quem sempre teve lugar de fala. Sua literatura, focada nas questões negras, dá um exemplo prático do significa à expressão. Machado de Assis, considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos, tem até os nossos dias sua negritude negada. Anos atrás, um comercial de TV o retratou como branco – whitewashing – e teve que se retratar. Uma propaganda de perfume cuja família que estrela a peça é uma família negra foi alvo de discurso do ódio.
É interessante pensar o papel da literatura como facilitador – buzzword corporativa, porém necessária – para dinamitar a cultura que privilegia somente um único discurso. Chimamanda Adichie comentou, em um dos TEDs mais aclamados, justamente sobre o perigo de uma história única, história essa que se enraíza e é chamada de oficial – e é contada pelo olhar de quem domina. O lugar de escuta surge na toada de dar voz a quem permaneceu por muito tempo calado.
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