Mentiras, de Felipe Franco Munhoz, foi um livro lido por acaso. Sugerido em um papo por acaso no stand da editora Nós nas Festas do Livro da USP, peguei a obra deixada em cima da mesa para dar uma olhada. De maneira desinteressada, comecei a leitura e, folheando entre as pausas no trabalho, o texto me prendeu.
O romance de estreia de Felipe foi publicado em 2016 e é todo escrito em forma de diálogo. Ali acompanhamos as conversas vespertinas do escritores Felipe e Philip Roth – sim, o romancista norte-americano, falecido em 2018. Intercalados, estão os encontros e as transas noturnas de Felipe e Thaís – o que lemos é a transcrição do encontro que Felipe faz pela manhã. Por esse motivo, ele nunca passou a noite com ela.
No diálogo entre os escritores, Felipe e Philip discutem sobre processos criativos, estética, técnicas literárias e sobre os encontros amorosos que geram sua ficção. Nesse flerte, Felipe engana Thaís para seduzi-la e conhecê-la. É dessa relação conturbada entre ficção e realidade que surge o nome do romance, Mentiras.
Aos poucos, vamos entendendo que esse relacionamento é metaficcional e Thaís vai se revelando enquanto personagem sendo criada e analisada. Nos diálogos, o processo criativo é desnudado e os recursos literários são expostos. Como um exemplo, em um dos trechos Felipe reflete sobre o uso de pontuações e apresenta as mudanças no momento em que escreve. Citando Faulkner e Saramago, a conversa com Philip vai tomando os ares das dúvidas, transformando em um diálogo sem pontos, com trechos em itálico ou com recuos enormes para marcar as pausas.
Além disso, a obra tem o tom do momento, das histórias autofictícias. O Felipe Franco Munhoz fora do texto mistura-se com o Felipe-narrador e com o Felipe-protagonista, criado pelo primeiro enquanto ele descobre Thaís.
Desse retrato que se apresenta, da Thaís enquanto romance em construção, surge Marina. A segunda mulher e paixão paralela que emerge na trama traz o aspecto da outra ideia que se manifesta em paralelo ao primeiro projeto literário. Das relações conturbadas, acompanhamos a pesquisa de Felipe, o desprezo da primeira ideia pela outra que aparece, suas inquietações e inseguranças.
Mentiras, então, construiria uma tríade da escrita do romance: Philip é a referência, a herança literária, o repertório de onde Felipe parte. Sendo analisada, Thaís personifica o processo da escrita, os embates do processo criativo e seus exercícios. A outra mulher, Marina, traz a ideia de um projeto a ser desenvolvido, menos intuitivo e passional, trazendo consigo a questão da cultura judaica, tão querida ao autor Philip Roth.
Por outro lado, em uma vídeo-resenha no seu canal Livrada!, Yuri Al’Hanati traz outra leitura, próxima e bastante interessante. Yuri vê no livro três visões da literatura: Philip é o estudo, a análise; Thaís, é a produção por amor, é a vida pela literatura; Marina é o estudo, a parte árdua do trabalho, o ganha-pão.
Yuri também destaca a presença de todas as obras do Philip Roth ao longo do livro. Roth aparece nas páginas no sentido de referências, de ideias, na imersão e extração de um personagem. Em uma entrevista ao canal Literatórios, Felipe Franco Munhoz comenta um pouco desse processo. Quase de maneira sem querer, Roth apareceu no livro e Felipe só concluiu a escrita ao terminar todas as obras de Roth (e colocar, de alguma forma, referências aos livros em toda sua narrativa).
Além disso, a obra tem o tom do momento, das histórias autofictícias. O Felipe Franco Munhoz fora do texto mistura-se com o Felipe-narrador e com o Felipe-protagonista, criado pelo primeiro enquanto ele descobre Thaís (esse recurso na literatura brasileira contemporânea já foi discutido aqui).
No entanto, não é necessário ter lido Roth para aproveitar a leitura (eu mesmo, nunca li). O que me parece mais importante nessa relação entre os dois está descrito por Juan Villoro, em seu ensaio chamado “Viagem em torno de uma mesa de trabalho”, publicado na serrote #32.
Ele diz: “em sua busca de uma linguagem que o caracterize, o escritor pode fazer-se tão presente a ponto de sufocar o texto. Certa vez conversei com Martins Amis sobre os últimos romances de Philip Roth. Com seu afiado sarcasmo habitual, ele me disse: ‘São ótimos, mas não entendo por que está tão obcecado em mostrar o trabalho enorme que teve para escrevê-los’. Estava se referindo à enfática voz narrativa que nos obriga a pensar mais no romancista – as decisões que tomou e as muitas alternativas que eliminou – do que em seus personagens”.
No que diz respeito ao livro, muito da discussão se dá no processo de construção de Thaís – uma mulher religiosa, mas que gosta de transar. O que incomoda um pouco é que a trama parece se simplificar no movimento da Thaís enquanto desejo sexual do autor – ainda que o relacionamento se torne mais complexo ao longo do romance, principalmente com o aparecimento de Marina.
Por fim, outro ponto que surge no desenvolvimento do livro são os trechos que parecem uma grande exibição intelectual, quando Philip e Felipe discutem grandes autores do cânone ocidental branco, como Hemingway, Capote, Melville, Faulkner, etc. Felipe se propõe a mostrar o seu arcabouço teórico do livro e discute teorias de diversos autores na narrativa. O recurso é bastante tedioso na maioria das narrativas, mas, o que joga a favor de Felipe, é que tais discussões não ficam jogadas na narrativas: são bem trabalhadas, expostas e servem a uma função narrativa clara.