Até onde aquela primeira experiência amorosa nos molda como seres humanos? Onde habita a potência afetiva que permite com que aquele sentimento não se perca nos emaranhados da memória? É o amor, afinal, o sentimento que define nossa humanidade?
São questões assim que borbulham na cabeça do leitor ao percorrer as curtas páginas de O Amor dos Homens Avulsos, romance publicado em 2016 pela Companhia das Letras e que foi finalista do prêmio Oceanos em 2017.
O romance de Victor Heringer — jovem e potente escritor morto esse ano — é de uma ternura tremenda.
Narrado em primeira pessoa, O Amor dos Homens Avulsos é o relato que busca resgatar as lembranças adolescentes de Camilo e o seu amor juvenil, Cosme. Camilo é um jovem criado na aba protetora dos pais e vive em situação confortável no bairro do Queím, no Rio de Janeiro dos anos 70. Situação muito diferente dos demais amigos de infância, todos marcados — na psicologia e na carne — pela precariedade de suas vidas.
Com uma deficiência física que dificulta a mobilidade, Camilo é o “aleijado da turma”, e se movimenta com o auxílio de muletas, o que lhe torna um menino esquivo, observador e recluso. Tudo na sua vida está fincado no rotineiro, na repetição dos seus hábitos. O choque que lhe tira dessa letargia é a chegada de Cosme.
É nesse momento que Camilo defronta-se com uma incursão antes completamente desconhecida por ele. A amizade que se formata entre os dois vai tomando moldes mais íntimos até que acontece o momento em que ambos veem nascer entre eles um amor inocente e sincero — como todos os primeiros amores.
Ao mesmo tempo que a potência da paixão surge junto aos dois, o choque de um sentimento assim surgindo entre dois garotos brota em paralelo. “Eu não me sentiria seguro nunca mais. Descobri na hora, isso. Meu coração começou a tossir ar gelado nas veias”, diz Camilo logo após o primeiro beijo em Cosme. Essa insegurança vinda de uma relação inabitual se justifica na parte final do romance.
A descoberta do protagonista é feita de contrastes: o amparo de um romance, com o desamparo da não-aceitação sobre quem compõe esse romance. “Todo idílio termina em tempestade”, diz o narrador a certa altura do seu relato. O idílio de Camilo e Cosme, não foi diferente. O ingênuo e curto amor dos adolescentes é interrompido por uma desgraça. A injustiça e a crueldade do acontecimento é algo que atravessa o leitor, e deixa uma marca indelével em Camilo. “Cosmim desapareceu e eu fiquei, como um tentáculo amputado de um polvo.”
Esse sentimento de incompletude talvez esteja na raiz dessa vontade de Camilo de resgatar suas próprias lembranças. É na memória que ele guarda a única relação bela que lhe coube viver no mundo. Relembrá-la, já envelhecido, é uma forma de tentar perceber que o luto, “que é lento e quieto sobre a face das águas”, também “é fértil”.
O romance também apresenta não só a costura dos sentimentos entre os dois protagonistas, mas também um mapa afetivo da cidade do Rio de Janeiro da década de 1970. Os bairros e as suas transformações, sempre indicadas pelo ir e vir temporal delimitado pelo narrador, servem como um sintoma das mutações que os personagens passam nas suas vidas e de como esses elementos estão interligados.
O romance também apresenta não só a costura dos sentimentos entre os dois protagonistas, mas também um mapa afetivo da cidade do Rio de Janeiro da década de 1970.
Descobrir uma outra forma de amar, de sentir, de estar no mundo, e enfrentar as vicissitudes dessa descoberta, saber o quão trágico e cruel isso também pode ser, ao mesmo tempo que se equilibra para tomar rédeas da vida, uma experiência que pode revelar-se perturbadora. No romance de Henriger, amor e ódio não estão em zonas opostas. Esses sentimentos encontram-se no mesmo lugar e podem manifestar-se através dos mesmos desejos.
Transformar esse tema, que tem seus tons lúgubres, numa manifestação poderosa de uma prosa que está sempre dialogando com o poético, é tarefa de autores maduros, donos de uma consciência da própria escrita que raros conseguem dar cabo com segurança e controle da história que narra. Victor Henriger dá conta da tarefa com um domínio surreal para um menino de 29 anos.
Com uma dicção muito única, Henriger forja na linguagem um caminho equilibrado para expor os afetos dos seus personagens. Seu romance é um catálogo de afetividades que explodem em múltiplas direções. A maturidade da sua escrita é a confirmação de que estávamos vendo nascer um dos mais importantes escritores da nossa geração. Seus dois romances — o primeiro foi Glória, pelo qual ganhou um prêmio Jabuti — apresentam uma qualidade pouco vista em letras tupiniquins entre os jovens ficcionistas.
O Amor dos Homens Avulsos é uma reflexão sobre o que é estar no mundo, e os modos de existir nele. Reflexão feita com uma elegância que experimenta o deslocamento de perspectivas para nos fazer perceber que “o primeiro amor é único. Os anos, o sexo, e as pequenas construções (filho, casa própria, poupança) fazem aceitar mais fácil as cópias desbotadas que a gente diz amar ao longo da vida, mas até a nossa cova aberta, esperando, fala daquela ausência”.
Fugindo das construções empobrecidas sobre o amor, a riqueza e o poder avassalador da prosa de Henriger está no fato de que o leitor inicia a leitura repleto de dúvidas e sai dela recheado de ternura por suas próprias experiências afetivo-amorosas. O resgate de Camilo pelo seu primeiro amor impulsiona o leitor a perceber como ele guarda as lembrança dos seus próprios amores.
Uma obra terna que harmoniza dois temas poderosos, que são o amor e a morte, não poderia ter uma execução mais cuidadosa do que essa que Henriger dá ao seu O Amor dos Homens Avulsos, que mostra-se como leitura fundamental para explorar esse escritor precoce no seu talento e na sua partida. A obra que Victor Heringer deixa é suficiente para posicioná-lo entre os grandes nomes da literatura brasileira contemporânea.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]O AMOR DOS HOMENS AVULSOS | Victor Heringer
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Agosto, 2016.
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