Acompanhando o Exército Vermelho a fim de escrever reportagens, Vassili Grossman (1905-1964) esteve em Treblinka em setembro de 1944, treze meses após a destruição do campo de extermínio – a qual se deu após um levante de seus prisioneiros, em 02 de agosto de 1943. Após a rebelião, o campo foi destruído e, antes disso, já havia ordens para que desaparecessem as provas das atrocidades lá cometidas.
Quando lemos o texto de Grossman, na excelente tradução de Irineu Franco Perpetuo, estamos diante de um texto escrito ainda durante a guerra, ainda antes da libertação de Auschwitz (que tornou-se o símbolo por excelência das políticas de extermínio perpetradas pelos nazistas).
Grossman relata, com base em entrevistas feitas com testemunhas oculares, toda a espécie de crimes lá cometidos. O ensaio (ou reportagem?) de Grossman não é muito longo e causa profundo impacto. Ao lermos, adentramos o campo, adentramos o “caminho sem volta” (as longas e muito bem trabalhadas notas de rodapé dão conta de que o nome utilizado pelos nazistas era mais perverso: “rua da ascensão” ou “caminho do paraíso”).
O racismo, o fascismo e o ódio (acrescento eu) perderam a guerra, mas, volto a citar Grossman, terão “a doce lembrança da facilidade de cometer assassinatos em massa”.
Aonde chegava este caminho sem volta, esta rua da ascensão, este caminho do paraíso?
“Então, eram conduzidas por uma alameda reta, ladeada de flores a abetos, com cento e vinte metros de comprimento e dois de largura, que levava ao lugar da execução. Dos dois lados da alameda havia arame farpado, e os Wachmänner, de farda preta, estavam ombro a ombro com os homens da SS, de cinza”.
Sim, o “caminho do paraíso” levava à câmara de gás.
Grossman narra como se dava o processo de chegada dos condenados ao campo. Seu relato é pormenorizado. A leitura nos permite ouvir o apito do trem, sentir o medo daqueles seres humanos diante daqueles que, diversas vezes e com justeza, Grossman chama de animais, de bestas e de humanoides: os nazistas.
O inferno de Treblinka cumpre sua função: informa o leitor sobre o funcionamento da indústria da morte, relata que houve problemas quando Himmler decidiu que os corpos deveriam ser queimados, não enterrados. Queimados deveriam ser, inclusive, os corpos já enterrados. Foi preciso encontrar um especialista na construção de fornos para queimar cadáveres. Este especialista veio da Alemanha (então nos lembremos de Paul Celan: “a morte é uma mestra d’Alemanha”). Não deveria haver prova das atrocidades cometidas. Funcionava com lógica industrial, mas uma indústria de homicídios, de genocídio.

Grossman, já encerrando seu ensaio/reportagem (contém certas imprecisões, mas todas elas são dirimidas pelas notas), reflete:
“Como foi acontecer? Traços embrionários de racismo, que pareciam cômicos ao serem exprimidos por professores-charlatães de segunda linha e míseros teóricos de província da Alemanha do século passado, o desprezo do pequeno-burguês alemão pelo ‘porco russo’, pelo ‘gado polaco’,, pelo ‘judeu fedorento’ […] todo esse mesquinho buquê embolado e barato a respeito da superioridade dos alemães sobre os outros povos da Terra, facilmente ridicularizável por publicistas e humoristas -, tudo isso, subitamente, no decorrer de alguns anos, converteu-se de ‘infantilidade’ em ameaça mortal à humanidade, à vida e à liberdade, tornou-se fonte de sofrimentos, sangue e crimes improváveis e jamais vistos.”
Trocando em miúdos: a grande tragédia começa com uma piada de mau gosto, começa com a frase “não tenho nada contra, mas…” e, também, começa com nosso silêncio em relação a isso, nossa indiferença a que queremos dar o nome de tolerância ou tentativa de não dar importância ao ódio. O racismo, o fascismo e o ódio (acrescento eu) perderam a guerra, mas, volto a citar Grossman, terão “a doce lembrança da facilidade de cometer assassinatos em massa”.
Estamos combatendo os discursos de ódio que andam estridentes no Brasil e no mundo, ou não? Será que, secretamente, não estamos pensando “não é comigo”? Para usar uma frase que ouvi nessa semana: será que não estamos contribuindo para diminuir nosso nível civilizacional?
Em tempo: O inferno de Treblinka se encontra na obra A Estrada, traduzida por Irineu Franco Perpetuo e publicada pela Alfaguara, em 2015.