O primeiro contato que tive com Tiago Ferro foi pelo seu texto “Já não era mais terça-feira, mas também não era quarta”, publicado na revista piauí de agosto de 2016. Em seu depoimento, Ferro contou como havia perdido sua filha de oito anos, Manuela, meses antes. Vítima de uma gripe comum numa época de surto da H1N1, Manu desenvolveu uma inflamação no coração (miocardite) que, camuflada pelos sintomas da Influenza, ocasionou sua morte. O caso logo ganhou dimensão nacional, como descrito no trecho do texto citado abaixo:
“Nossa história ganha uma súbita dimensão pública. Recebo da minha mãe, via WhatsApp, um vídeo com o trecho do Jornal da Record que noticiou o óbito, menos de 24 horas depois de ocorrido. Em nenhum momento procuramos a imprensa. A reportagem, apesar de respeitosa, me incomoda. Nossa filha virou um tipo social: criança de 8 anos; da classe média paulistana; com acesso às melhores escolas e hospitais; vítima da gripe. Não! É a nossa Manu”.
No depoimento, Tiago conta os momentos mais imediatos do luto e as diversas tentativas de abrandar a dor, como a psicanálise, o budismo e a meditação. Dois anos depois da morte e da veiculação do desabafo, o escritor estreia na ficção com o livro O Pai da Menina Morta, publicado pela editora todavia. Tomando como base sua experiência, Ferro segue a linha dos escritores brasileiros da autoficção (conforme já discuti na resenha de O Oitavo Selo, de Heloísa Seixas, e de maneira menos pungente na resenha de Noite dentro da Noite, de Joca Reiners Terron) e conta a história de um pai que precisa enfrentar o luto após perder sua filha de oito anos para uma miocardite.
Na abertura do livro, Tiago Ferro usa Karl Ove Knausgard como epígrafe: ‘Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para’. É essa diferença entre a ação mecânica de um coração que simplesmente para e a reação sentimental daqueles que ficam que move parte da trajetória de O Pai da Menina Morta.
Os personagens do livro, com exceção da mãe Lina, não têm nome. Alguns são denominados de acordo com iniciais, como T. ou R, e os protagonistas são chamados pelo papel que desempenham, como Minha Filha e Minha Outra Filha. Identificado como o Pai da Menina Morta, o narrador condiciona sua identidade à tragédia, fato reforçado ao longo do livro, mas também mostra a fragmentação e perda de rumo proveniente do choque, mostrando em diversos momentos que não sabe muito bem como ser chamado – “Autor?”, “Empresário?”, “Aluno?”, “Amigo?” – ou se descreve como em um roteiro de filme, fora de si. Ele se torna “apenas” o Pai da Menina Morta.
É a partir do descolamento que Ferro experimenta também na forma do romance. Em entrevista para o Clube do Livro da Veja, o escritor explicou que que o livro foi escrito num momento em que o luto passava da fase aguda para um momento de reconexão; uma espécie de readaptação ao mundo depois do estranhamento de tudo que é cotidiano. Assim, partindo da escrita convencional de um diário, Tiago começou a fazer experimentações com a memória e a percepção do tempo para montar a desestabilização que caracteriza a trama do livro. Quase um álbum de recortes, o narrador dissolve o tempo e as coisas rotineiras, como listas do supermercado e verbetes de dicionário, e nos coloca dentro do luto em estado bruto, que funde passado, presente e futuro; mescla ficção e realidade.
Dentro dessa estrutura fragmentada, vemos a tentativa do narrador de se conectar às coisas cotidianas depois do choque. Nessa trajetória, o percurso sexual é um dos que tem mais destaque: de um lado, o gozo, o prazer, a vida; do outro, a culpa, a dor, a morte. Nesse caminho, diversos modelos surgem. Um deles é o intitulado [tribunal] e que julga as ações do narrador por meio de trechos como: “não será aceita essa sua tentativa patética de se matar simbolicamente em um romance. A fuga para o sexo também não vai funcionar. Não há cura para você e já se esgotaram todas as apelações de defesa possíveis”.
Do relacionamento do narrador com a mortalidade surgem questionamentos pulsantes, como “Quanto dura o ser humano?” ou “Com quantos anos Minha Outra Filha vai morrer?”, e o acompanhamento de outras perspectivas, a continuação de trajetórias que se cruzaram com a da filha de alguma forma. No entanto, os trechos mais marcantes são os que tratam das potencialidades de uma vida interrompida quando O Pai da Menina Morta passa a tratar das memórias da Minha Filha que passam a preencher o seu cotidiano recém-reconquistado: “O marcador com ímã está na página do dia 26 de abril. Não deu tempo de ler a história na escola. Fecho o diário. O futuro interrompido gravado a lápis em letra cursiva que começava a ganhar firmeza é das coisas mais duras que eu já li. Desejo ficar cego. Para sempre”;
“O corpo da Minha Filha é desligado sem nenhuma explicação. Ninguém me avisou nada. (…) O tapete ficou manchado para sempre. O prato de sopa marcou a mesa de madeira. O colchão com os mapas dos xixis. (…) Eu queria ter cuidado dela mais um pouco, levado a mais duas consultas, dormido na cama dela por mais doze dias, dito mais quarenta e sete vezes que tudo ia dar certo”.
Na abertura do livro, Tiago Ferro usa Karl Ove Knausgard como epígrafe: “Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para”. É essa diferença entre a ação mecânica de um coração que simplesmente para e a reação sentimental daqueles que ficam que move parte da trajetória de O Pai da Menina Morta. Para lidar com o luto, ele procurou respostas em diversas origens – na psicanálise, no espiritismo, na yoga, na meditação, no budismo, mas pareceu encontrar sua resposta na literatura, assim como Tiago Ferro.
O PAI DA MENINA MORTA | Tiago Ferro
Editora: Todavia;
Tamanho: 176 págs.;
Lançamento: Março, 2018.
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