No campo do realismo mágico brasileiro, José Jacinto Veiga é um escritor cuja estreia ocorre mais tardiamente do que Murilo Rubião. Veiga escreveu de 1959, ano de sua estreia com a coletânea de contos Os Cavalinhos de Platiplanto, até pouco antes de sua morte, em 1997. Sua bibliografia conta também com romances e novelas.
Assim como em O Ex-mágico de Rubião, alguns dos contos da coletânea Os Cavalinhos de Platiplanto fazem emprego direto do modo narrativo do realismo mágico, embora o próprio autor relutasse em aceitar tal caracterização.
Em “A usina atrás do morro”, a chegada de um par de misteriosos estrangeiros precede a ruína da vila onde mora o narrador. Após a construção da usina que dá titulo ao conto, cujo propósito os habitantes do vilarejo desconhecem, a comunidade passa a ser assolada por fenômenos surreais, como o impossível surgimento de motociclistas sanguinários que atropelam sem piedade qualquer um que esteja à sua frente e a súbita queima espontânea de diversas habitações.
Em ‘A usina atrás do morro’, a chegada de um par de misteriosos estrangeiros precede a ruína da vila onde mora o narrador.
A naturalidade com que são narrados esses acontecimentos, cujo elemento central é um fenômeno inescapavelmente sobrenatural, pode ser vista como demonstração de seu emprego das técnicas do realismo mágico.
Complexidade no regionalismo
Os Cavalinhos de Platiplanto já estabelece alguns dos principais temas com os quais se preocuparia o autor, bem como sua voz narrativa e técnica ficcional, colocando seu nome em evidência como um autor com uma literatura fortemente marcada por sua vivência interiorana.
Ao contrário do que ocorre em Murilo Rubião, o universo ficcional de José J. Veiga é marcado por um regionalismo que torna imediata a associação do espaço narrativo à realidade brasileira; mas, assim como o contista mineiro, Veiga utiliza-se de topônimos próprios, criando vilas, cidades e comunidades verossimilmente brasileiras, mas inteiramente ficcionais.
Em termos estilísticos, Veiga busca uma prosa concisa, empregando um léxico de poucos exageros e fazendo uso frequente da narrativa em primeira pessoa. Apesar de fortemente marcada pelo regionalismo, essa característica não resume toda a complexidade da voz do autor, que se aproxima da oralidade e parece ser ideal para a exploração de alguns dos temas centrais à obra de Veiga.
Se Rubião é marcado pela presença de alguns mitos pessoais, a literatura de J. Veiga é frequentemente associada à infância, especificamente à “meninice”, o ser menino; o ponto de vista narrativo é frequentemente protagonizado por garotos de pouca idade, ou por homens mais velhos que relembram episódios da infância.
O lúdico tem uma presença forte nos contos de Os Cavalinhos de Platiplanto, associando o ato de brincar, a imaginação e o poder criador das crianças ao próprio elemento fantástico — a infância, por si só, é um mundo da imaginação, em que a magia e a realidade são tratadas e manipuladas com igual materialidade.
Ainda, o universo de José J. Veiga é um em que o fantástico irrompe lentamente, penetrando a vida do narrador (e de sua comunidade) como um líquido que infiltra, aos poucos, a fundação de uma casa. As narrativas do autor têm início de forma natural, beirando o realismo, e é apenas com o desenvolvimento da trama que o fantástico irrompe; é tratado, contudo, com naturalidade. Apesar de poder causar certo espanto, nunca é apontado como algo impossível, contraditório ou ilógico.
O fantástico e o totalitarismo
O Absurdo existencial, como em Rubião, também está presente em alguns dos contos de Veiga e mais fortemente nos romances A Hora dos Ruminantes e Sombras de Reis Barbudos, que já foram apontados como analogias da ditadura militar brasileira. Em Veiga, o Absurdo transcende a experiência individual e está ligado às relações de opressão e alteridade, enfatizando a futilidade — ou a total impossibilidade — de resistência diante de um poder opressor sobrepujante, invencível.
As narrativas de A Hora dos Ruminantes e Sombras de Reis Barbudos, que detalham o encontro de duas comunidades rurais fictícias com uma súbita ocupação por um Outro enigmático, sintetizam temporal e espacialmente o período da ditadura militar brasileira. De forma similar à aldeia de Macondo de García Márquez, as comunidades de Manarairema e Taitara representam o espaço da opressão histórica a partir da perspectiva do oprimido, fornecendo um relato polifônico de vozes silenciadas de representação na história, sempre definida pelo centro de poder.
Apesar da relação direta com o momento histórico de sua publicação, o comentário que J. Veiga constrói nessas obras não deve ser lido apenas em termos de resistência ao período militar, mas como uma discussão acerca das hierarquias sociais e da própria natureza humana quando nos encontramos diante da opressão ou do autoritarismo em todas as suas formas. Nos dias de hoje, dias de ascensão do extremismo político em todo o planeta, esta é uma leitura mais que necessária.
OS CAVALINHOS DE PLATIPLANTO | José J. Veiga
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Junho, 2017 (atual edição).