“Eu tinha inveja da escrita dela – a única escrita de que tive inveja na vida” escreveu Virginia Woolf. Woolf escrevia em seu diário sobre Katherine Mansfield, nome adotado por Kathleen Mansfield Beauchamp em sua carreira como escritora. Katherine Mansfield (1888-1923) foi uma escritora neozelandesa de contos e poemas, considerada uma mestra do conto modernista. Apesar das questões que atrapalhavam seu ritmo de publicação, como problemas de saúde, Mansfield deixou uma obra valiosa para nós.
Clarice Lispector foi outra grande escritora do século XX que reconheceu o poder da escrita de Katherine Mansfield. Lendo a obra da neozelandesa pela primeira vez, Clarice teria dito que Mansfield era ela mesma (mas escrevendo em inglês, claro). A “Clarice Lispector da língua inglesa” talvez seja uma boa forma de apresentar essa brilhante autora para o público lusófono. Realmente, muitos pontos comuns são interessantes – o trabalho literário com a perspectiva da mulher, o contemplar o cotidiano, as relações humanas, o uso inteligente do silêncio, e mais.
Mas há também muitas características únicas nos contos de Katherine Mansfield. Para além de nossas referências de Clarice e Virginia, Katherine era uma mulher de identidade complexa. O amorfo que havia na sexualidade, na condição social, na terra de origem de Mansfield cruzava sua visão de mundo e enriquecia sua produção com outras questões. Um exemplo simples porém bastante ilustrativo é o conjunto de imagens da escritora. Ao ler a prosa modernista de língua inglesa, vemos muitos elementos típicos britânicos, como as menções feitas à aristocracia. No entanto, Mansfield cresceu afastada dessa realidade londrina e fala de paisagens tropicais, essas sim familiares para a ela. Outros pássaros, outras plantas, outras paisagens.
Apesar das questões que atrapalhavam seu ritmo de publicação, como problemas de saúde, Mansfield deixou uma obra valiosa para nós.
Cada vez mais Katherine Mansfield é estudada como uma escritora marcante do modernismo. Duas coletâneas de contos são as mais famosas: Felicidade e outras histórias, de 1920, e A festa no jardim e outras histórias, de 1922. Com trabalhos publicados pela Hogarth Press, editora de Woolf e seu marido, Katherine Mansfield mostra ter tido trânsito entre os intelectuais do Grupo de Bloomsbury. Sua amizade com Virginia Woolf e outros apontam para como Mansfield estava no epicentro intelectual britânico da época.
Muitos são os ótimos contos de Katherine Mansfield. No conto “Prelúdio” da coletânea Felicidade e outras histórias, como exemplo, acompanhamos um dia na infância das crianças Burnell. O texto conta com a participação de diferentes membros e amigos da família em diversos tipos de interação. O conto explora vários relacionamentos humanos suscitando que o leitor perceba os diferentes estados mentais das personagens.
Mansfield não colocava os personagens sob holofotes, mas apenas mostrava a vida interior de cada um deles. Olhares, palavras, expressões faciais. Muitos tópicos perpassam sua prosa: são mencionadas frutas tropicais, como o abacaxi; conversas sobre sonhos e os íntimos da mente, típico de uma sociedade que despertava para o poder do inconsciente freudiano. Em especial, as mulheres questionam seus lugares na sociedade como uma constante.
Outro ótimo conto é “A festa no jardim”, da coletânea A festa no jardim e outras histórias. A família abastada organiza uma festa de jardim, mas, dado um certo momento, ouvem falar sobre uma tragédia nas proximidades. A protagonista se questiona se a festa do lado de dentro de seus portões não era insensibilidade demais frente à realidade externa – dizem-lhe que não. Nesse conto, a crítica social toma contornos de classe de forma pouco comum, muito enfocada na percepção da jovem protagonista. Como de costume, Katherine Mansfield salienta a paisagem mental dos personagens e por aí nos leva a outros lugares.
A leitura de Mansfield é de impacto, como Clarice e Woolf, mas duma maneira toda própria. Felizmente, os contos de Mansfield podem ser encontrados em traduções brasileiras da década de 1990 e existem ainda novas traduções lançadas há poucos anos por diferentes editoras. Katherine Mansfield é uma autora genial com talentos únicos que merecem atenção. Não deixe de conhecê-la!