Há dois dias, houve um dos grandes feriados alemães, o Dia da Reunificação Alemã, quando o Muro de Berlim foi finalmente derrubado. Os alemães ainda hoje dizem que o muro físico caiu, mas o muro no coração dos cidadãos ainda permanece em pé.
Berlim é uma cidade cheia de cicatrizes, e a beleza dela está exatamente aí: essas cicatrizes contam histórias impressionantes de sobreviventes de um período no qual liberdades individuais foram suprimidas no lado oriental, e o lado oriental da cidade, aquela ilha capitalista no meio do vermelho, era visto como um paraíso. E não foi à toa que tentativas de cruzar de um lado ao outro foram empreendidas, desde as mais desesperadas, com saltos espetaculares, tirolesas e outros artifícios, até as mais engenhosas. Como túneis.
Escavando para a liberdade
Os túneis, do escritor e jornalista Greg Mitchell, em tradução de Carolina Caires Coelho, descreve com minúcia algumas tentativas de fuga por meio de túneis escavados em alguns pontos da Alemanha Oriental para cruzar o Muro. Para que não reste dúvida, [highlight color=”yellow”]uma nota aos leitores no início do livro esclarece que todos os acontecimentos, falas e depoimentos do livro são reais, com ajustes de sintaxe ou pontuação.[/highlight] Pois as histórias contadas no livro são realmente espantosas.
E elas não se restringem às fronteiras berlinenses, mas envolvem a Casa Branca, Cuba, Rússia, os lados francês e inglês de Berlim. Não envolve apenas os “atravessadores”, as pessoas que abriam túneis ou organizavam as fugas da Alemanha Oriental, mas também Kennedy e o alto escalão norte-americano dos anos 60. E não envolve somente a imprensa local, mas canais importantes como a NBC e a CBS, que se empenhavam em acompanhar escavações e fugas em tempo real.
[box type=”note” align=”alignleft” class=”” width=”350px”]
Leia também
» Horror em Tchernóbil: as vozes de uma tragédia
» A lógica perversa da humilhação online
[/box]
E muita sujeira. Não só da terra das escavações, mas também das negociatas entre governantes para que se impedisse que canais de televisão filmassem os túneis, dos canais de televisão para ver quem conseguiria o primeiro furo de reportagem, das próprias pessoas que se organizavam para abrir os túneis. E, no meio desse fogo cruzado político e midiático, pessoas comuns. [highlight color=”yellow”]Pessoas que tinham sede de liberdade, desejo de ir além, e se uniram pelo objetivo comum de mostrar que não havia o que pudesse impedi-los de cruzar aquela fronteira doentia.[/highlight]
Refugiados cinematográficos
Um dos trunfos do livro Os túneis é a luz que o Mitchell consegue jogar sobre as personagens – escavadores, atravessadores, ajudantes –, que para os alemães ocidentais eram refugiados a serem acolhidos, para os alemães orientais eram traidores subversivos perigosos. Mas ele não reduz essas mulheres e homens a simples símbolos de liberdade, mas traz fatos familiares, um tanto da psicologia dos envolvidos, e dedica parte do livro aos acordos fechados entre as redes de televisão norte-americanas e os organizadores de túneis, por exemplo. Ou seja, não havia apenas uma questão libertária, mas monetária que motivava algumas daquelas pessoas.
Acompanhamos também tristes histórias de separação, como a de Gerda Stachowitz, Hartmut Stachowitz, seu marido, que é preso junto com três membros do Grupo Girrmann, um dos principais grupos organizadores de túneis, e seu filho pequeno, Jörg. Há cartas de Gerda à família, ansiando pelo reencontro entre os três, cheia de esperança. E também há traições, como as famílias que cediam seus porões para as escavações, mas “saltavam de banda” assim que a Stasi começava a investigar movimentações suspeitas.
O ser humano, entre erros e acertos, é capaz de estender a mão para outro ser humano quando o outro mais precisa.
Para Peter Flechter
Mitchell dedica seu livro a Peter Flechter e grande parte dos capítulos 10 e 11 do livro para descrever a história de fuga desse jovem pedreiro, que teve repercussões sérias nos dois lados do Atlântico. Em uma tentativa de chegar ao Checkpoint Charlie, que era a porta de entrada para do setor norte-americano de Berlim (que existe até hoje como monumento), Peter Flechter e Helmut Kulbeik se arriscam na travessia “a frio”, ou seja, por cima do muro. Kulbeik consegue chegar ao Ocidente, mas Flechter perde o impulso e tenta se proteger entre as vigas de concreto do muro. Em vão.
Entre pedidos de socorro, o rapaz é alvejado e abandonado pelos soldados de fronteira para sangrar até a morte. À época, sua morte serviu de combustível não apenas para acirrar os ânimos entre as Alemanhas, mas também para voltar o povo contra os norte-americanos que, segundo testemunhas, demoraram demais a tomar uma atitude com relação à morte do pedreiro.
Parece novela, mas é real
Os túneis tem um lado assustador, mas também cenas de novela, como casamentos entre refugiados e escavadores, traição dentro das fileiras dos organizadores dos túneis, intrigas internacionais. E, conforme Mitchell atesta, tudo muito bem documentado. Inclusive há fotos de vários dos organizadores dos túneis, dos planos de escavação, de Eveline e Annett Schmidt, mãe e filha que foram a origem do túnel da Bernauerstrasse (onde hoje fica o Memorial do Muro) e até mesmo de Kennedy com um dos figurões que cuidava das relações internacionais norte-americanas à época.
Sou suspeito, pois as histórias que envolvem as Grandes Guerras e a questão do Muro de Berlim sempre me deixam empolgado. E com o livro de Greg Mitchell não foi diferente. Porém, não foi apenas o fato de contar diversas “anedotas” sobre refugiados da Berlim Oriental que me fez gostar do livro, mas sim ver que o ser humano, entre erros e acertos, é capaz de estender a mão para outro ser humano quando o outro mais precisa.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]OS TÚNEIS | Gregg Mitchell
Editora: Vestígio;
Tradução: Carolina Caires Coelho;
Quanto: R$ 33,40 (352 págs.)
Lançamento: Julho, 2017.
[button color=”red” size=”small” link=”http://amzn.to/2yr3SDP” icon=”” target=”true” nofollow=”true”]Compre na Amazon[/button][/box]