Ao negar as mortes decorrentes do covid-19 no Brasil, Pedro Almeida, ex-curador do Prêmio Jabuti e editor da Faro Editorial, reacende o debate sobre o obscurantismo que ainda paira sobre o ambiente artístico – falsamente libertário e progressista. As declarações de Almeida – em conjunto à famigerada escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da Flip 2020 – nos convidam a discutir o papel da Arte em um cenário não apenas pandêmico, mas também em crise política, econômica e social.
As declarações por si só são bastante alarmantes. De acordo com Almeida, haveria uma supernotificação de casos e essa hiperexposição da doença seria uma estratégia política, uma cortina de fumaça para sabe-Deus-o-quê. Baseado em dados obtidos no Portal da Transparência – cujas informações não são atualizadas em tempo real –, o ex-curador diz: “alguém está mentindo para você”.
Não bastassem as quase 25 mil vidas ceifadas pelo vírus, Almeida se aquietou diante da morte de importantes nomes da literatura brasileira contemporânea como Sérgio Sant’Anna, que em 2019 havia celebrado 50 anos de publicação do seu primeiro livro, e Olga Savary. “Quem ocupa lugar público precisa honrar a posição que exerce. Faltou humanidade e solidariedade. Sobrou leviandade e desrespeito”, comentou a historiadora e escritora Lilia Scharwcz em sua conta no Instagram.
Faltou humanidade e solidariedade. Sobrou leviandade e desrespeito”, comentou a historiadora e escritora Lilia Scharwcz em sua conta no Instagram.
Se nos últimos anos o Jabuti, a premiação de maior relevância no universo literário brasileiro, se mostrou como um instrumento potente de diálogo e coesão, cujas escolhas dos premiados traziam à tona temas caros à nossa história – e aqui me refiro a livros como A Resistência, de Julián Funks, e Amora, de Natália Borges Polesso, por exemplo –, agora parece retroceder, volta à época em que era preciso silenciar o artista, colocar em xeque a argumentação aberta sobre feridas ainda não cicatrizadas.
A postura conservadora não é exatamente um espanto: basta visitar a página da casa editorial criada por Almeida para testemunhar que muito daquilo que foi dito em sua polêmica e problemática postagem no Facebook. A necessidade de naturalizar a barbárie e de suavizar o sofrimento alheio é uma estratégia bastante presente no atual governo federal, assim como o negacionismo e a manipulação dos dados. “Fiz um post com dados incorretos; errei por acreditar que eram corretos. Assim que amigos me avisaram disso, apaguei o post. Não desejava colocar inverdades e, como jornalista, sempre confiro antes de divulgar. Mas apostei na fonte”, afirmou Almeida em nota de retratação.
Existe, portanto, um ponto nevrálgico em toda essa situação e que é a desumanização do outro, e a descaracterização da violência simbólica. Pensar na figura do curador é imaginar alguém aberto ao diverso, propenso a olhar o diferente com os olhos de acolhida e não fechado em uma visão trivial da Idade Média.
No calor do momento, essa parece uma resposta atravessada ao crescimento das editoras independentes e ao surgimento de mais e mais autores que não estão atrelados aos grandes grupos editoriais. Sob esse prisma, e justamente num momento em que as editoras e livrarias de pequeno porte precisam se reerguer, escritores organizam eventos online para que possam vender e lançar seus livros durante a quarentena, a cultura – um dos poucos instrumentos capazes de nos livrar da escuridão e do caos – parece subtraída pelo mesmo grupo que açoita a democracia e chama 64 de revolução.
“É preciso estar atento e forte”, já dizia Caetano na letra de “Divino maravilhoso”. E nunca pareceu estar tão certo.