Imagine que você está em uma viagem, cortando o país pelas rodovias com sua família e amigos. Em um determinado momento, depois de horas vendo a paisagem rolar, vocês resolvem parar em um local refrescante e fazer um piquenique (uma alternativa ótima para quem quer fugir daquelas redes enormes e caras).
Então, vocês estacionam, pegam a toalha no porta-malas e estendem na grama. Com a mesa servida, vocês comem, brincam, fumam, vão ao banheiro ou qualquer outra necessidade tangente. Passado um tempo, vocês retomam o seu caminho, deixando algumas bitucas de cigarro, guardanapos sujos ou, quem sabe, até mesmo um brinquedo esquecido.
Em Piquenique na Estrada (1971), livro dos irmãos Arkadi e Boris Strugátsky, lançado por aqui pela editora Aleph no final de 2017, com tradução de Tatiana Larkina, a premissa é parecida. De maneira misteriosa, alienígenas visitaram a Terra e seguiram seu caminho, mas não sem modificar o espaço em que pousaram. Esses locais, chamados de Zona, está repleto de entulho extraterrestre e de anomalias físicas e nós, como os animais no seu piquenique, ficamos por aqui, sem entender nada. Esquecidos.
No caso do livro, a maior parte das coisas é perigosa ou letal – outra porção de coisas se mostra útil e fácil de ser adaptada ao nosso uso cotidiano. No entanto, todas essas tecnologias são desconhecidas e inexplicáveis, fazendo com que seja plausível que as novas baterias alienígenas não passem de uma espécie de chave de fenda.
Essa falta de comunicação e de compreensão é um dos pilares do romance. Em certa momento, um pesquisador diz que esses objetos são respostas para perguntas que nós, enquanto humanidade, nem sequer sabíamos que poderiam ser feitas – mesmo depois de anos de pesquisa pelos Institutos Internacionais de Cultura Extraterrestre.
Como diz Ursula K. Le Guin no prefácio da edição, o livro desmonta a noção do que Stanislaw Lem chamava de “o mito do nosso universalismo cognitivo”. Lem foi um escritor polonês responsável pela escrita de Solaris, livro em que os humanos são derrotados e humilhados por não conseguirem compreender culturas alienígenas. Sobre a obra dos Irmãos Strugátski, Ursula diz: “a ideia de que a raça humana pode não despertar absolutamente nenhum interesse a uma espécie ‘mais avançada’ poderia facilmente se prestar a um sarcasmo óbvio, mas o tom dos autores permanece irônico, cheio de humor e compaixão” – como explícito em um determinado diálogo no livro sobre a importância da vida, a relevância dos humanos e o desenvolvimento científico:
Como nos lembra Ursula, enquanto as histórias de contato alienígena mais tradicionais tem como protagonistas os exploradores heroicos ou pesquisadores com superinteligência, em Piquenique na Estrada acompanhamos o homem comum.
“– Espere aí – discordou Noonan. – São coisas completamente diferentes. Pois estamos falando da psicologia de seres inteligentes…
– É. Seria muito bom se soubéssemos o que é inteligência.
– E não sabemos? – surpreendeu-se Richard.
– Acredite se puder, não. Geralmente, partimos da definição, bastante simplória, segundo a qual a inteligência é a propriedade humana que distingue suas ações das dos animais. Sabe, aquela velha tentativa de diferenciar um dono de seu cão, que entende tudo e só não consegue falar? Aliás, dessa definição simplificada originam-se também outras, mais espirituosas, as quais se baseiam em tristes observações da mencionada atividade humana. Por exemplo: inteligência é a capacidade humana de cometer ações irracionais ou antinaturais.
– Pois é, essa nos descreve bem – concordou Noonan.
– Infelizmente, sim. Existe também outra definição-hipótese, segundo a qual a inteligência é um instinto complexo que ainda não se formou por inteiro. Quer dizer, a ação humana é sempre racional e natural. Será necessária, porém, a passagem de milhões de anos para que esse instinto termine de se formar, e então pararemos de cometer erros que, provavelmente, são parte inseparável da própria natureza da razão. Mas se alguma coisa mudar no universo, seremos rapidamente extintos, justamente porque teremos desaprendido como cometer erros, ou seja, como testar várias possibilidades não previstas pelo rígido programa racional.
– Como o senhor consegue fazer tudo parecer… tão humilhante?”
Tanto Solaris quanto Piquenique na Estrada foram adaptados para o cinema por Tarkovsky. No entanto, a obra dos Strugatski passou para as telas sob o nome de Stalker, termo chave no romance e que ficou bastante popular na Rússia. Enquanto os objetos perigosos surgiam nas Zonas e as forças policiais passaram a cercar os locais, proibindo o acesso, um mercado negro passou a abastecer institutos e agentes interessados em adquirir os artefatos estrangeiros – tanto para pesquisas oficiais quanto para usos escusos.
Os stalkers, então, eram os caçadores de sucata que arriscavam suas vidas para invadir a Zona, se esgueirando pelos postos de controle e barreiras. Em Piquenique na Estrada, acompanhamos a vida de Redrick Schuhart, o Ruivo, que é um dos mais eficientes stalkers de Harmont.
Como nos lembra Ursula, enquanto as histórias de contato alienígena mais tradicionais tem como protagonistas os exploradores heroicos ou pesquisadores com superinteligência, em Piquenique na Estrada acompanhamos o homem comum – estamos na esfera do cotidiano. Os personagens são traficantes, a raça humana foi menosprezada por alienígenas, a ciência não consegue compreender e o sistema político e econômico está em ruínas.
Red é um protagonista que vive com uma corda no pescoço, sem saber se volta de suas expedições, enquanto tenta trazer dinheiro para sua esposa e a Monstrinho, sua filha, que nasceu afetada por uma doença em decorrência do contato do pai com a Zona – problema enfrentado por quase todos os stalkers que têm filhos.
O conflito cotidiano, os limites da ciência e o ato de retirar do pedestal o aspecto “inteligente” e “racional” da humanidade é o que há de mais interessante na narrativa, já que coloca em foco as reflexões sobre nossa existência e sobre a importância dela dentro do universo.
PIQUENIQUE NA ESTRADA | Arkadi e Boris Strugátsky
Editora: Aleph;
Tradução: Tatiana Larkina;
Tamanho: 320 págs.;
Lançamento: Novembro, 2017.