Em 2013, Justine Sacco, uma mulher de 30 anos que trabalhava como relações públicas, aguardava o embarque para viajar da Inglaterra para a África do Sul. Pouco antes de embarcar ela tuitou a seguinte frase para aproximadamente 200 seguidores: “Estou indo para a África. Espero não pegar HIV. Brincadeira. Sou branca”. Para Sacco, tratava-se de uma piada de humor negro carregada de ironia a respeito de como o mundo desenvolvido enxerga o subdesenvolvimento, como fazem pouco caso do racismo, etc. Seria, portanto, segundo o seu próprio ponto de vista, tanto uma piada meio besta quanto uma forma crítica e corrosiva de encarar a globalização.
O caso é que os seus seguidores e os seguidores dos seus seguidores não acharam graça. Na verdade acharam aquilo extremamente ofensivo e no meio tempo em que ela esteve no voo, não pode acompanhar o linchamento virtual que lhe arruinou a reputação, pois quando o avião pousou algumas horas depois a frase havia se espalhado pela internet com tal profusão que a sua vida profissional já estava destruída. O caso é famoso (e já foi tema do livro Humilhado, de Jon Ronson) e existem vários outros bem parecidos: pessoas que escreveram bosta na internet e foram julgadas e condenadas por outras pessoas que acreditavam agir como justiceiras virtuais.
O Tribunal da Quinta-Feira, escrito por Michel Laub e publicado pela editora Companhia das Letras, trata deste assunto espinhoso, o linchamento virtual, de maneira muito competente. No romance, acompanhamos a história do publicitário José Victor que teve vários e-mails pessoais vazados por sua ex-mulher. O conteúdo desses e-mails, diferentemente do caso de Sacco, não eram públicos e tratavam de coisas bastante comprometedores: conversas íntimas entre ele e seu amigo de longa data, Walter. Naquele ambiente virtual, os dois exprimiam sua intimidade de maneira chula, com piadas ofensivas, preconceituosas e degradantes, um tipo específico de comunicação e de humor desenvolvido ao longo de 25 anos de amizade. Tipo cumprimentar um velho amigo com um “Eaê, seu filho da puta!” ou rir de uma piada mais pesada do Louis C. K.
Walter era portador do vírus HIV e apelava para um discurso repulsivo, relacionando um encontro com alguém como uma oportunidade de passar o vírus adiante, por exemplo, como um mecanismo de defesa. Uma piada interna e escrota como uma forma de lidar com uma situação desesperadora. Ele dizia essas coisas penas para o seu amigo, aquele tipo de comunicação funcionava num determinado espaço discursivo que não o tratava como repulsivo, pois os envolvidos tinham acesso ao contexto em que o discurso se dava e podiam compreender o sarcasmo presente em cada frase.
Ao selecionar trechos dessas conversas privadas, editá-los em sequência e espalhá-los pela internet, a ex-mulher do protagonista, irritada ao ler coisas horríveis sobre si mesma e sobre a amante de 20 anos do ex-marido, acaba por jogá-lo numa arena de gladiadores cuja dimensão é impossível de ser determinada.
Os tribunais da internet costuma ser irascíveis, nós sabemos (é um local em que adultos se unem para xingar uma criança por ela ter riscado o nome do Neymar numa camiseta da seleção, por exemplo). As pessoas se empenham bastante em bradar não só por justiça, mas também para tentar impor um tipo de comportamento que acreditam ser coerente e socialmente aceitável. É o pensamento do tipo “se todo mundo está odiando essa pessoa, também vou odiá-la, pois assim posso fazer parte de um grupo”. E acreditamos estar sempre no grupo certo, no grupo da maioria consciente e razoável.
O livro reflete sobre este tempo em que essas pessoas legais estão com o martelo da justiça nas mãos e sobre certa apatia que isso gera (afinal, quem tem estômago para encarar os debates infinitos?)
Há um conjunto de regras que sustentam o tipo de autoimagem que gostamos de cultivar: fingir certa melancolia, fazer piada sobre o fracasso pra parecer humilde e inteligente, já que todos os ignorantes alienados só sabem discursar sobre o sucesso e isso é um claro sinal de arrogância, dizer que leu coisas legais, posicionamento político em cima do muro, ali no centro pra não desagradar ninguém e não perder curtidas, envolvimento fictício em causas sociais, defesa do meio ambiente, críticas à ditadura da moda, da beleza, da alimentação não saudável, condenação dos regimes totalitaristas dos países que nem sabemos onde ficam etc. Enfim, essas coisas que nos fazem parecer legais, mesmo que estejamos descabelados e de pijama na frente de um computador tentando fugir do tédio de nossas vidas chatas pra caralho. Não é difícil parecer legal e descolado na internet, não é necessário nem produzir algum conteúdo, basta compartilhar as coisas certas.
O livro reflete sobre este tempo em que essas pessoas legais estão com o martelo da justiça nas mãos e sobre certa apatia que isso gera (afinal, quem tem estômago para encarar os debates infinitos?). O curioso é que o autor não apresenta seu protagonista como um coitadinho que foi injustamente acusado de algum crime e nem apenas como um imbecil preconceituoso que só fala merda, ele pode perfeitamente ser as duas coisas, bem como nenhuma delas, pois tudo é editado de acordo com a percepção de quem conta a história.
Na verdade, mesmo narrando em primeira pessoa, o protagonista tenta se distanciar dos fatos, buscando quase uma neutralidade, que faz com que os dois pontos apresentados (o início da AIDS nos anos 80 e o vazamento de conversas íntimas na internet em 2016) sejam mesclados de forma muito interessante e colocados de modo a permitir que o próprio leitor se posicione a respeito, sem uma inclinação necessariamente direcionada. Num geral ele tenta explicar o contexto em que aquilo tudo foi escrito, para que pareça menos horrível aos olhos do júri. É lógico que como só temos o lado do publicitário, não sabemos com certeza o que a ex-mulher pensa a respeito de tudo o que ele diz em sua própria defesa, então isso é algo que dever ser levado em consideração e que permite deixar mais reflexões em aberto. Essa é a grande sacada: as informações (verdadeiras ou não) estão postas, então cabe ao leitor dar-lhes sentidos de acordo com sua visão de mundo.
O Tribunal da Quinta-feira é um trabalho corajoso que elabora um retrato contundente de seu tempo. Acredito que seja o livro nacional que melhor retrate o nosso comportamento virtual. Fora isso é uma obra que confronta muitos discursos bastante populares entre a galerinha mais “consciente” e “engajada” da internet. O que me leva a crer que as futuras mesas redondas a respeito desse livro terão um potencial pirotécnico bastante elevado.
De qualquer forma, sempre que falo do Michel Laub para amigos e alunos, geralmente acabo recomendando O Diário da Queda, pois sempre considerei este o seu melhor trabalho. Chegou a hora de começar de indicar O Tribunal da Quinta-feira também.
O TRIBUNAL DA QUINTA-FEIRA | Michel Laub
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 165 págs.;
Lançamento: Novembro, 2016.